O governo de Vladimir Putin já promove a impressão de livros infantis para serem distribuídos em Kharkiv, região ucraniana que não faz parte da lista conhecida de objetivos de guerra da Rússia no país vizinho ou teve a anexação decretada pelo Kremlin.
Trata-se de um abecedário com referências à cultura russa na província, que fica ao nordeste da Ucrânia e foi um importante centro industrial nos tempos da União Soviética (1922-1991). Sua capital, homônima, é a segunda maior cidade do país depois de Kiev, com 1,4 milhão de habitantes.
Já são distribuídas versões específicas do livro para o Donbass (área ao leste que engloba Donetsk e Lugansk), Zaporíjia e Kherson (ambas no sul). É o projeto “Abecedário das Regiões”, lançado neste ano.
Esses quatro entes foram anexados pela Rússia após referendos não reconhecidos pela comunidade internacional em setembro de 2022, mesmo antes de Putin controlar a maioria de seus territórios. Hoje, o russo controla talvez 70% deles.
“Não sei o que fazer com os adultos dos novos territórios, mas podemos começar pelas crianças”, diz de forma desassombrada o pai da ideia dos livros, Aleksandr Kofman, 47, que nega instintos genocidas.
Ele foi o chanceler da autoproclamada República Popular de Donetsk de 2016 a 2018, e é considerado um dos principais ideólogos da afirmação do caráter russo da região. É indivíduo sob sanções dos EUA e da União Europeia.
Expansivo à sua maneira, ele não mede palavras sobre a guerra. “Ela só acabará quando acabarmos com o Estado ucraniano. Uma opção é ficarmos com nossas regiões e deixarmos poloneses, romenos e húngaros dividirem o resto.”
Noves fora a impraticabilidade da proposta aos olhos de Kiev e do Ocidente, sua fala reflete a visão comum sobre o conflito no leste ucraniano, uma região historicamente de maioria russófona.
A novidade é a prática. Kherson, Zaporíjia e o Donbass já são partes formais da Federação Russa, na visão do Kremlin. Kharkiv, não.
Até aqui, o presidente russo disse em junho passado que silenciaria canhões se as quatro regiões que anexou forem entregues e a Ucrânia, declarada neutra e desmilitarizada ao ponto de não ameaçar as fronteiras de seu país.
Em maio deste ano, Putin lançou uma frente de ataque contra Kharkiv. Ocupa uma pequena porção no norte da região, da qual já dominou quase a metade em 2022, mas não avançou. Depois, chegou a dizer que não tinha interesse de tomar a capital regional “neste momento”.
No abecedário de Kharkiv, Kharkov na grafia russa, a letra T é representada pelo famoso tanque de guerra T-34, principal modelo soviético da Segunda Guerra Mundial, que foi desenhado e produzido na capital. No prefácio, Kofman escreve que o livro ensina sobre “as pessoas graças às quais nossa região se tornou parte da vasta Rússia”.
“Este é um projeto pessoal que foi abraçado pelo Estado”, afirmou, sem detalhar tiragem ou valores, durante conversa em um hotel de Donetsk.
Os volumes, edições caprichadas com capa dura, trazem os selos oficiais do festival literário Estrelas sobre Donbass, entidade tocada por Kofman desde 2019, a Câmara Pública de Donetsk e do Fundo Presidencial para Iniciativas Culturais.
Criada por Putin em 2021, o fundo promove artistas e iniciativas alinhadas aos valores russos esposados pelo Kremlin. No ano passado, distribuiu o equivalente a R$ 95 milhões a 303 projetos, segundo a mídia russa.
A maior fatia ficou com uma série de TV chamada “Átomo Pacífico”, trama de espionagem passada na usina nuclear de Zaporíjia, tomada pelos russos em 2022. Grupos de música pró-guerra e outros entusiastas do conflito também foram agraciados.
Em seu site, há três referências ao patrocínio a Kofman, sem citar valores, e numa delas o “Abecedário das Regiões” aparece como um projeto decorrente do apoio do fundo.
A versão de Kherson do livro de Kofman, que é coautor, foi vista pela reportagem na capital temporária da parte ocupada da região, Guenitchesk, embalada e pronta para ser distribuída por voluntários que ajudam refugiados por lá.
“Kharkiv sempre foi uma cidade russa”, diz, repetindo a ideia comum de que a história e a russofonia típica da região se refletem em designação étnica. No único censo feito até hoje por lá, em 2001, 70% dos moradores se identificavam como ucranianos.
O ex-ministro, hoje membro do conselho superior da administração de Donetsk, diz que sua solução da partilha da Ucrânia não é inaudita do ponto de vista histórico, citando a divisão da Alemanha em três porções ocidentais e uma comunista após a queda do nazismo, em 1945.
“A única chance que temos [os russos] é isolar essa gente o máximo possível. Não falo de extermínio físico, claro”, afirma. “Acho que temos muitos anos de conflito com o Ocidente pela frente.”
Neste momento, contudo, ele diz que a Rússia está “cozinhando o sapo” na Ucrânia. Ou seja, lentamente desestruturando o governo de Volodimir Zelenski, que ele acredita que irá colapsar porque Moscou tem mais recursos humanos e materiais para empregar em combate. “Eles perderam o gás.”
À sua maneira, o ideólogo admite que “cometemos um erro colossal”. No caso, ter aceito o status quo após a derrubada do presidente russófilo Viktor Ianukovitch, em 2014. “Agora temos de consertar tudo”, diz Kofman.