Henry Kissinger nunca foi um homem de consensos. Embora influente como poucos na diplomacia e incontornável no currículo de relações internacionais, sempre teve a atuação questionada tanto do ponto de vista prático como teórico.
Em junho, pouco depois do centésimo aniversário de Kissinger, um artigo na revista Foreign Policy apontou um dilema envolvendo a reputação do ex-secretário de Estado dos EUA, que morreu nesta quarta-feira (29). “Embora ele seja aclamado como um pensador de política externa de profundidade, sabedoria e intuição únicas, sua longa carreira não é tão impressionante como os seus admiradores parecem pensar.”
Assinado por Stephen M. Walt, professor de relações internacionais da Universidade Harvard, o texto põe várias reticências nos feitos de Kissinger, a começar por sua fase acadêmica, de 1954 a 1969, quando também lecionou em Harvard.
“Apesar de vários de seus livros terem recebido ampla atenção, suas contribuições teóricas nesse período não foram significativas. Nenhum de seus primeiros trabalhos merece o rótulo de clássico, e poucos são amplamente lidos ou discutidos pelos estudiosos hoje”, escreve Walt.
Isso sem prejuízo de reconhecer que Kissinger tinha “uma inteligência formidável” e de lembrar que seu nome estampa bolsas de estudo e centros de pesquisa de diversas universidades.
Para Walt, as outras fases da carreira de Kissinger –primeiro como homem de Estado, depois como autor e analista— não mudaram esse quadro, embora possam tê-lo afastado de voos mais ambiciosos na produção teórica.
“Mas o fato permanece o mesmo: julgado apenas como acadêmico, Kissinger não é membro do panteão.”
Matias Spektor, professor de relações internacionais da FGV, concorda com o diagnóstico de Walt, inclusive no que diz respeito à enorme influência de Kissinger.
“Ele vendeu milhões de exemplares de livros. Não dá para minimizar isso. Mas o grande legado dele é a prática da diplomacia. Sua escrita e sua prática foram muito influentes, mas também muito controversas, e os críticos são ferozes em ambos os casos.”
E não é difícil entender a ferocidade dos críticos também no mundo acadêmico. Representante de uma corrente teórica conhecida como realista, Kissinger considerava que a política internacional se resumia à relação entre as grandes potências.
Em seu primeiro grande livro, “O Mundo Restaurado” (1957), ele analisa como Metternich, primeiro-ministro da Áustria-Hungria durante o Congresso de Viena de 1815, procurou restabelecer a ordem política anterior à Revolução Francesa e às guerras napoleônicas.
São os grandes líderes atuando para resolver os problemas da época e encontrar um equilíbrio aceitável entre eles. Tudo o mais seria secundário, diz Spektor, autor do livro “Kissinger e o Brasil” (Zahar, 2009).
Segundo o professor da FGV, pesquisadores já mostraram que “O Mundo Restaurado” contém imprecisões historiográficas, o que talvez explica por que a obra não tenha tanto peso assim –embora não seja irrelevante. Da mesma forma, o livro “Armas Nucleares e Política Externa”, ainda da fase acadêmica de Kissinger, tampouco galgou os degraus mais alto do prestígio universitário.
As ressalvas, entretanto, não impedem Spektor de pôr Kissinger na bibliografia de seu curso introdutório na FGV. “Mesmo sabendo das limitações do trabalho sobre o grande concerto europeu, eu passo um capítulo, porque, além de tudo, é muito bem escrito. Ele é uma entrada muito atrativa para as relações internacionais.”
Sem contar, é claro, que Kissinger é um exemplo vivo de como deve se portar um diplomata realista, cujo pragmatismo o leva a considerar os interesses de seu Estado acima de tudo. Daí por que David Magalhães, professor de relações internacionais da PUC-SP e da Faap, afirma ser crucial separar o ator do autor.
“Kissinger é bibliografia básica. Se a gente percorrer as disciplinas importantes, as introdutórias, seja sobre história das relações internacionais, seja sobre teoria, ele acaba aparecendo.”
Magalhães diz que Kissinger, nascido na Alemanha, levou para os EUA a mentalidade do realismo nas relações internacionais, para a qual o Estado não deve se vincular nem a ideologias nem a valores morais.
Nada a ver, portanto, com a linha mais conhecida nos EUA de defender a autodeterminação dos povos, de querer exportar a democracia e de advogar por uma ordem global baseada no direito internacional.
“Ele entende a paz pelo equilíbrio de poder, não por meio de arranjos do direito internacional ou de concepções abstratas. A paz existe como resultante de um armistício”, afirma Magalhães.
Para ele, ainda que “Kissinger tenha as mãos cheias de sangue pelo muito que fez como homem de Estado”, trata-se de um autor da maior relevância. “É preciso conhecer essa tradição realista, nem que seja para depois criticar.”
Em seus cursos, Magalhães costuma recomendar “Diplomacia”. Publicado no Brasil em 1994 pela Saraiva, o livro conta a história das relações internacionais do ponto de vista do realismo, mostrando como o próprio autor se insere nessa corrente.
Uma visão privilegiada, de quem acompanhou esse universo por décadas e conseguiu pôr em prática muitas de suas ideias —ainda que o impacto destas tenha sido menor do que daquelas.
“Espero que não chegue às cátedras de relações internacionais a ideia de sair cancelando o autor Kissinger só porque se discorda de suas premissas. Para questionar, é preciso conhecê-lo”, diz Magalhães.
Fatos da vida de Henry Kissinger
1923: Nasce Heinz Alfred Kissinger em Fürth, na Alemanha
1938: Fugindo do nazismo, muda-se aos 15 com a família, judia, para os EUA, onde adota o nome Henry
1943: Recebe cidadania americana e serve no Exército como intérprete de alemão
1954 – 1969: Professor e diretor de centro de pesquisa na Universidade Harvard, onde havia feito graduação, mestrado e doutorado
1956 – 1968: Consultor em diferentes agências do governo, primeiro no Departamento de Defesa, depois no Conselho de Segurança Nacional, na Agência de Controle de Armas e Desarmamento e por fim no Departamento de Estado
1969: Assume como Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Richard Nixon (republicano). Participa da organização das Conversas sobre Limites para Armas Estratégicas, conferências e tratados entre EUA e União Soviética para reduzir as tensões na Guerra Fria
1969 – 1973: Defende bombardeios no Camboja, em extensão à Guerra do Vietnã; estimativas mais conservadoras falam em pelo menos 150 mil civis mortos
1970: Com o apoio de Kissinger, a CIA sob Nixon auxilia militares no Chile a desestabilizar o regime Salvador Allende desde a posse até o golpe de 1973. Também apoiou o golpe de 1976 na Argentina, quando uma junta militar derrubou a presidente Isabel Perón
1971: Visita a China secretamente para abrir caminho a visita histórica de Nixon no ano seguinte, em esforço para afastar o país comunista da União Soviética
1972: Volta à China e reúne Nixon, Mao Tsé-Tung e Zhou Enlai, em viagem que marca abertura do país asiático para o mundo
1973: Torna-se Secretário de Estado. Recebe o Nobel da Paz pelas negociações pelo fim da Guerra do Vietnã junto do vietnamita Le Duc Tho, que recusa o prêmio
1974: Nixon renuncia, sob pressão do escândalo de Watergate, mas Kissinger permanece no governo sob o presidente Gerald Ford
1977: Deixa o cargo de Secretário de Estado com a vitória do democrata Jimmy Carter
1982: Abre sua bem sucedida empresa de consultoria
2002: Indicado por George W. Bush para liderar a comissão que investigou o 11 de Setembro, renuncia ao posto um mês depois alegando conflito de interesses com clientes de sua empresa de consultoria.