Um corvo e um eleitor indeciso entram num bar na Filadélfia. O corvo aponta o bico para uma caixa atrás do balcão, que o barman traz para ser aberta. O corvo, imperturbável, começa a montar um quebra-cabeças simples de madeira sobre o bar, enquanto o eleitor indeciso, numa banqueta ao lado, assiste aos 90 minutos do talvez único debate entre Donald Trump e Kamala Harris.
Quando o quebra-cabeças está completo, o corvo —como todo animal, subestimado pelo homem— nem precisa pedir e logo recebe um prato de sementes.
Quando Kamala sai do palco dirigindo o trator que passou sobre o adversário republicano, o eleitor indeciso retém uma expressão que o filósofo Søren Kierkegaard chamaria de angst, seu herdeiro Jean-Paul Sartre, de “angoisse existentielle”, e o barman descreve com palavras que não devem ser reproduzidas num jornal lido por famílias.
Depois de passar esta quarta-feira (11) ouvindo inúmeras entrevistas com supostos representantes deste unicórnio demográfico, o segmento avaliado em 15% da população eleitora, que ainda pode considerar o criminoso condenado e estuprador com gritantes sinais de demência uma alternativa a Kamala Harris, joguei a toalha.
Graças à geringonça antidemocrática do Colégio Eleitoral, esses zumbis políticos devem ter um poder maligno e desproporcional sobre a eleição do próximo detentor dos códigos nucleares americanos.
E, a julgar pelos grupos de amostragem reunidos por jornalistas americanos para assistir juntos ao debate, não se pode classificar estes indecisos de, como se chama aqui, “eleitores de baixa informação,” a base da pirâmide social que Trump considera seu trunfo.
As objeções a definir o voto, a menos de dois meses da eleição, quando um dos candidatos é um livro aberto para o público nacional há 9 anos, são explicadas em contorcionismos pernósticos que variam de fixações pessoais fúteis a puro sinal de alienação cívica. Basta considerar, por exemplo, que apenas o Projeto 2025, que Trump, mentindo, finge não apoiar, é um detalhado programa distópico para transformar o governo federal numa teocracia controlada pela minoria constituída por supremacistas brancos.
Ao contrário do corvo, um bicho com memória prodigiosa, que, de acordo com cientistas, consegue se lembrar do rosto de uma pessoa que o destratou por até cinco anos e reagir com raiva a um reencontro, o eleitor indeciso, assim, como boa parte da seita trumpista, sofre de amnésia.
A pergunta que ouço, há anos, de brasileiros e de moradores de outros continentes é: “Como é possível esquecer o horror de 6 de janeiro de 2021 e apoiar o líder daquela baderna assassina?”.
Não sei o que responder e temo não querer descobrir a resposta.
Uma explicação apenas parcial é também um clichê sobre a cultura deste país, que prefere a história encenada em parques de diversão. O eleitor indeciso pode ter pós-graduação, mas não parece ter imaginação para refletir sobre a marcha autoritária que desaguou em fascismo ou stalinismo e devastou outros países.
É bem possível que o debate entre Kamala e Trump não tenha efeito expressivo na escolha dos indecisos e na vitória de novembro. Mas, depois de ouvi-los, tenho curiosidade sobre qual lado da tela de TV dividida, durante o debate, um corvo ia bicar.
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