De um lado, um resumo do sonho americano: uma filha de imigrantes, que cresceu em um lar de classe média, criada pela mãe que trabalhava muito, e conseguiu se tornar uma promotora que lutou contra abusadores sexuais e criminosos transnacionais, chegou a secretária de Justiça, senadora e vice-presidente dos EUA.
Do outro lado, Donald Trump —um homem que “não é sério”, mas cujo segundo mandato teria consequências “extremamente sérias”— com a imunidade que ganhou da Suprema Corte, ele não terá limites, vai acabar com direitos reprodutivos das mulheres, com assistência médica, com o departamento de educação, e se alinhará a tiranos.
Eleitores, o que parece melhor?
O discurso de Kamala Harris na convenção democrata na quinta-feira (22) tentou definir a candidata democrata para eleitores independentes e indecisos –antes que Trump consiga emplacar os rótulos que vem tentando colar na testa da sua oponente, por ora, sem sucesso.
“Essa campanha é diferente. Tudo que precisamos fazer é definir nosso oponente como sendo comunista, socialista e alguém que vai destruir nosso país”, disse o republicano Donald Trump na semana passada.
Como Kamala sintetizou em seu discurso: “Minha mãe sempre me dizia —nunca deixe ninguém te dizer quem você é…você mostra para os outros quem você é.”
E há pouco tempo para isso —só 75 dias até a eleição.
Ainda que esteja na Casa Branca desde 2021, Kamala é uma ilustre desconhecida para muitos americanos. Ela foi uma vice-presidente mais apagada, que, no início do mandato, ficou marcada pelas brigas e alta rotatividade em seu gabinete. Depois, assumiu a tarefa mais ingrata –a questão da imigração. O governo Biden viveu uma explosão no número de imigrantes indocumentados entrando pela fronteira do México. Kamala foi apelidada de “czar da fronteira”, epíteto agora repetido à exaustão por Trump.
A partir do momento em que a Suprema Corte, recheada de juízes conservadores nomeados por Donald Trump, derrubou a garantia federal ao direito ao aborto, em 2022, Kamala achou sua voz. Na defesa aos direitos reprodutivos das mulheres, a vice-presidente ganhou destaque – e uma cobertura mais positiva na mídia.
Mas ela continuava uma tela em branco –e isso era um perigo.
Com o discurso, em que ela discorreu sobre sua biografia, mas também abordou temas políticos que são suas vulnerabilidades –imigração, política externa, Gaza– Kamala espera ter se vacinado contra as tentativas de Trump de retratá-la como a próxima encarnação de Nicolás Maduro.
Para isso, sua fala colocou o patriotismo no centro. De forma similar ao que os bolsonaristas fizeram com a camisa verde e amarela e a bandeira do Brasil, trumpistas se apropriaram dos símbolos nacionais dos EUA. E Trump diversas vezes acusa os democratas de serem anti-americanos, de não se orgulharem do próprio país, de serem comunistas. Ëu amo nosso país de todo o coração”, disse Kamala, no estádio forrado de bandeiras dos EUA. “Americanos, vamos mostrar ao mundo quem nós somos”, disse.
Também enfatizou seu lado durona como promotor na Califórnia, processando abusadores sexuais e o contraste entre a promotora e o condenado Trump. Descreveu em detalhes com que tipo de criminosos processou e voltou a usar o “We the people”, como dizem os promotores em julgamentos nos EUA, frase que tinha usado em 2019.
Discursos nunca foram o forte de Kamala. Ao contrário do colega democrata Barack Obama, que foi catapultado à fama após um discurso na convenção democrata de 2004, a democrata nunca primou pela oratória empolgante. Kamala se destacou mais com frases certeiras em debates e questionamentos incisivos no Senado. Mas veio treinando e tem feito discursos que levantaram plateias em seus comícios.
Seu momento de apresentação oficial na campanha mostrou um discurso eficaz e empolgante.
Ela foi ovacionada pelos apoiadores. Mas resta saber como o discurso vai reverberar entre algumas dezenas de milhares de eleitores independentes e indecisos nos estados pêndulo.
“Sei que há pessoas de várias visões políticas assistindo hoje à noite. E quero que vocês saibam: eu prometo ser uma presidente para todos os americanos, uma presidente que une todos nós em torno de nossas maiores aspirações. “
Ela espera que seu apelo à união, e sua apresentação oficial ao eleitorado americano conquistem os céticos.