O que aconteceu na semana passada? Além do espetáculo competente, da renovação do otimismo na convenção democrata e do evidente alívio com a rejeição de uma gerontocracia, o que os democratas fizeram foi muito mais do que substituir o rapidamente envelhecido presidente Joe Biden.
Algo mudou e não é sinalizado pela idade de Kamala Harris ou Tim Walz. Os democratas parecem ter começado a desenhar um país que não se acovarda diante do fascismo niilista de Donald Trump e sua gangue.
Se Biden defendia sua reeleição como uma resistência às sombras —e, convenhamos, isso não basta para tirar eleitores de casa em um país em que o voto não é obrigatório— a campanha de Kamala começou a dizer o que democratas pensavam já em 2016, quando Hillary Clinton não acreditou nas chances de Trump.
Como se espera de uma candidata que aspira a governar para todos, Kamala falou na convenção aos mais de 74 milhões de americanos que votaram em Trump na eleição de 2020. Mas ela deixou claro que não que ia acomodá-los em agendas grotescas, como perseguir e prender menores grávidas estupradas por parentes.
Nos novos anúncios de campanha e nos discursos em comícios, Kamala e Walz não dão refresco ao extremismo da visão trumpista para o país. Não se desculpam. Ridicularizam o obviamente senil e ridicularizável criminoso condenado que o Partido Democrata jamais ofereceria como candidato a presidente.
Rick Perlstein, o melhor cronista dos anos de Ronald Reagan e de sua consequência na política americana, argumenta que a convenção democrata, na semana passada, marcou a primeira vez em que o partido saiu da posição defensiva adotada nas últimas quatro décadas.
Uma das heranças malditas da era Reagan —com repercussões em outros países— é a noção de que qualquer infraestrutura de governo é intrinsecamente desonesta e um assalto ao contribuinte. Este guarda-chuva de hipocrisia produziu corrupção épica na máquina de governo, nos anos 1980, capitaneada por reaganistas.
A lista de acomodações dos democratas é lamentável. Em 1988, Michael Dukakis, o candidato que perdeu para o vice do corrupto Reagan, George Bush pai, fez campanha se recusando a denunciar a ideologia antigoverno a qualquer preço e foi esmagado.
Em 1992, Bill Clinton venceu e se reelegeu rejeitando seus colegas de partido, acomodando desastrosos neoliberais como Robert Rubin, do Citigroup, que iam contribuir para o derretimento financeiro de 2008. Em dois anos, os baderneiros de direita, liderados pelo amoral vale-tudo Newt Gingrich, dominaram o Congresso.
Em 2000, o então vice-presidente Al Gore, o primeiro político de projeção mundial a alertar para a catástrofe do aquecimento do planeta, fez campanha sem tocar no tema urgente que lhe valeu um prêmio Nobel da Paz.
E o que dizer de Barack Obama que, como lembra o historiador Perlstein, pronuncia “política” como se fosse um palavrão? Sem a untuosa política —e a mestre em praticá-la, Nancy Pelosi— não haveria uma conquista que entrou para a história como Obamacare, o seguro saúde passado no governo dele, em 2010.
Os democratas haviam se tornado o partido dos candidatos que pisam em ovos, enquanto os republicanos se tornaram o touro na loja de porcelanas. Se os republicanos perderam a vergonha de promover mentiras, como a desculpa para invadir o Iraque, os democratas embrulhavam sua sinceridade em tantos cobertores de precaução que ela soava como falsidade. A chapa Harris-Walz rompeu com este ciclo.
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