Estamos em Brown Mills Park, um bairro predominantemente negro no sul de Atlanta. Uma longa avenida cheia de casinhas desemboca em uma encruzilhada com dois mercadinhos abertos 24 horas, um ponto de ônibus e uma barbearia. Nos fundos dela, cerca de 30 pessoas se espremiam em uma espécie de edícula, enfrentando o calor de 35ºC numa segunda-feira de junho.
Só neste ano, três pessoas foram mortas por arma de fogo em um raio de menos de um quilômetro dali.
Era a primeira reunião aberta da organização Mães Contra a Violência por Gangues (MAGV, na sigla em inglês) no novo centro comunitário. Fundada por Tekesia Shields em 2017, após seu filho de 17 anos ser preso por roubo, o grupo oferece todo tipo de apoio a famílias atingidas pelo crime.
Muitos estão ali porque têm um familiar na mesma situação. Outros, porque temem que isso aconteça com os adolescentes sob seus cuidados. E há ainda os que perderam alguém próximo, como Paulette Smith, cujo filho, então com 22 anos, foi morto em 2021 ao ser baleado em seu quarto.
Tekesia diz que a violência tem se agravado no bairro, o que explica a mobilização da comunidade. Isso, no entanto, não tem se traduzido em um engajamento na conturbada eleição presidencial americana deste ano. “Muitas pessoas sentem que sua voz não importa”, resume.
A MAGV foi uma das organizações que receberam financiamento da Fundação Rocket, criada pelo rapper Quavo após seu sobrinho, o também músico Takeoff, ser morto a tiros em 2022. O crime causou comoção em Atlanta, onde os dois construíram sua carreira no grupo Migos.
A taxa de homicídio de brancos por armas de fogo foi de 3 casos para cada 100 mil habitantes em 2022, segundo o Centro de Políticas sobre Violência. Entre negros, esse número dispara para 25,3. A taxa é ainda maior em estados como Wisconsin, Pensilvânia e Michigan, três colégios eleitorais essenciais na corrida presidencial deste ano.
“A explicação para isso é que comunidades afetadas pela pobreza, falta de investimentos e desigualdade social experimentam altas taxas de violência. As pessoas ficam sobrecarregadas e deprimidas, e todos esses problemas contribuem para níveis mais altos de violência doméstica, interpessoal e social”, diz Alexandra Filindra, professora de ciência política e psicologia na Universidade de Chicago e autora do livro “Raça, Direitos e Fuzis”.
“Em outros países, a violência e a pobreza também andam juntas. A diferença é que, com a facilidade de acesso a armas de fogo nos EUA, é muito mais fácil acabar em fatalidades”, completa. Não à toa, o apoio a leis mais rígidas para o acesso a armas é muito maior entre negros do que entre brancos.
Para a brasileira Paula Park, diretora de programas da Rocket, grande parte do debate americano se centra em tiroteios em massa, como as chacinas em escolas, embora esse tipo de ocorrência responda por 1% das mortes por armas de fogo.
“Os políticos tentam enquadrar o problema como algo muito grande e abstrato: uma questão racial, uma questão econômica. Isso faz com que as pessoas sintam que não podem fazer nada a respeito, quando, na verdade, existem soluções que já se mostraram eficazes, mas que são subfinanciadas”, diz Park.
A fundação realizou um evento no mês passado com a vice-presidente Kamala Harris, que comanda o primeiro escritório da Casa Branca para prevenção de violência por armas de fogo. Alçada ao topo da chapa democrata na disputa pela Presidência, Kamala tem enfatizado o tema em sua campanha.
“Nós, que acreditamos que cada pessoa deve ter a liberdade de viver livre do terror da violência por arma de fogo, finalmente aprovaremos leis de sinais de alerta, verificações universais de antecedentes e uma proibição de armas de assalto [semelhantes a utilizadas por militares]”, disse a pré-candidata democrata em seu primeiro comício, na última terça (23).
Leis de sinais de alerta (“red flag laws”, em inglês) permitem que o Estado confisque a arma de uma pessoa avaliada como um risco a si ou aos outros. Verificações universais de antecedentes eliminariam uma brecha que permite a pessoas impedidas de comprar armas em comércios conseguirem adquiri-las de outros indivíduos.
“A posição de Kamala é a posição do mainstream democrata nessa questão, mas acho que ela também está tentando aproveitar o fato de que Donald Trump foi alvo do que parece ser uma variação do perfil do tiroteio em massa. E, mesmo assim, ele ainda não mudou sua opinião sobre o controle de armas”, diz a cientista política Andra Gillespie, especializada em política afroamericana na Universidade Emory, em Atlanta.
Na contramão de dados, Trump diz que violência está fora de controle e culpa imigrantes
O republicano, que foi alvo de disparos de um fuzil do tipo AR-15, promete em seu programa de governo defender liberdades fundamentais como “o direito de manter e portar armas”. Em seu primeiro discurso como candidato à vice-presidência, no penúltimo dia da convenção do partido, J.D. Vance contou que sua família encontrou 19 pistolas carregadas na casa de sua avó, depois que ela morreu.
“Eles estavam escondidos por toda a casa: debaixo da cama, no armário, na gaveta de talheres. Essa mulher idosa e frágil garantiu que, não importa onde estivesse, ela estava ao alcance do que precisasse para proteger sua família. É por isso que lutamos. Esse é o espírito americano”, disse Vance enquanto era ovacionado pelo público.
A campanha de Trump não é alheia ao problema da violência nos EUA, mas o atribui a outro culpado: imigrantes. A ideia de que a criminalidade está fora de controle no país é central na campanha republicana, na contramão das estatísticas, que mostram queda nos principais indicadores, como a taxa de homicídios, desde o ápice atingido na pandemia.
Se na campanha democrata a violência é atribuída a armas, na republicana, o problema são os imigrantes. “É insano o que estamos fazendo ao deixar milhões de pessoas cruzarem a fronteira. É irreal pensar que não vamos pagar um preço por isso em violência”, disse Debbie Kuehne, delegada da Louisiana que participava da convenção.
Trump tem se valido de casos de crimes cujos suspeitos são imigrantes para reforçar suas críticas ao governo Biden, sob o qual um recorde de pessoas entrou no país. Um dos casos mais recentes foi o da jovem Rachel Morin, estuprada e morta em Maryland por um homem de El Salvador que entrou ilegalmente nos EUA em fevereiro do ano passado, segundo a polícia.
“Eles [os imigrantes] estão vindo de prisões e cadeias de todo o mundo, de hospitais psiquiátricos”, disse o empresário em um comício em Michigan no sábado (20), afirmando, sem provas, que a violência em países como Venezuela e Equador teria despencado porque os criminosos estariam sendo enviados aos EUA.
No entanto, um extenso estudo realizado por pesquisadores de Stanford, Princeton, Northwestern e Universidade da Califórnia em Davis mostrou que a taxa de encarceramento de imigrantes é 60% menor do que a da população americana, e vem caindo desde os anos 1960.
Mesmo quando comparados apenas com americanos brancos, cuja taxa de encarceramento é menor do que a da população negra, a de imigrantes ainda é 30% menor.
O estudo vai até o ano de 2020, mas, nos últimos quatro anos, a taxa de homicídios nos EUA caiu quase 20%. Ainda assim, há uma percepção crescente entre americanos de que imigrantes são mais propensos a cometer crimes.
Trump também é favorecido pelo fato de a defesa do direito à posse e o porte de armas ser um elemento muito mais mobilizador do eleitor do que o apoio a uma regulação mais rígida do tema, embora a maior parte dos americanos seja favorável a leis mais duras.
“Há uma assimetria significativa entre os defensores do controle de armas e as pessoas que acreditam em direitos absolutos às armas e na importância da Segunda Emenda, que são muito mais propensas a votar, e a votar no Partido Republicano. Já o controle de armas não é uma questão identitária para a maioria das pessoas”, diz Filindra, da Universidade de Chicago.
“As pessoas que estão sofrendo com a violência por armas de fogo na forma de tiroteios de gangues e problemas no bairro já são mal atendidas, são pobres e estão alienadas do sistema de qualquer maneira. A violência armada torna ainda mais difícil para elas realmente participarem da política. Isso é um fardo extra”, completa.
Folha publica série sobre eleição americana
Kamala Harris e Donald Trump se enfrentam nas urnas em novembro, numa disputa cheia de reviravoltas e que deve ser acirrada. Os grandes temas que mobilizam o eleitorado dos Estados Unidos serão abordados pela correspondente Fernanda Perrin pelos próximos meses, até outubro. Imigração, economia e aborto estarão entre os assuntos presentes nas reportagens da série Kamala x Trump.