Pouca gente sabe, mas existe um Mundial de futebol para pessoas em situação de rua, os chamados sem-teto.
Existe faz tempo, aliás. Neste ano será disputada na Coreia do Sul, em setembro, a 19ª edição.
Quando me deparei com “Jogo Bonito” (The Beautiful Game, 2024), em exibição na Netflix, lembrei-me de reportagem que produzi em 2003 acerca da primeira Copa do Mundo desse segmento, realizada na Áustria e que teve a participação do Brasil.
Nesse tema (sem-teto), o que mais chama a atenção são as histórias dos indivíduos.
Cada um, sem exceção, tem algo marcante para relatar sobre o passado, invariavelmente marcado por dificuldades, dramas, sofrimento e derrotas na vida.
“Jogo Bonito”, longa de cerca de duas horas baseado em fatos reais, trata desses desnorteados.
O personagem principal, Vinny (Micheal Ward), canhoto habilidoso, junta-se de última hora à equipe da Inglaterra que viajará de Londres a Roma para tentar ser bem-sucedida pela primeira vez no Mundial dos sem-teto.
Vinny adora futebol, porém traz consigo a decepção de ter sido dispensado quando mais jovem pelo West Ham, time da elite inglesa.
Fracassos pessoais e profissionais (separação da esposa, distância da filha, percalços no emprego, a dispensa no futebol) o fizeram se tornar amargo, alguém que pouco sorri em público.
O treinador Mal (Bill Nighy) o vê “invadir” um jogo mirim (repleto de crianças usando camisa com o nome “Messi”), empolga-se com sua habilidade e, deduzindo que fosse um sem-teto, convida-o para a disputa da Copa do Mundo.
Inicialmente, Vinny, que é orgulhoso e não aceita expor abertamente a situação em que se encontra, recusa, não admitindo que vivia nas ruas –pernoitava em um carro.
A insistência de Mal, que o havia visto atuar no infantil do West Ham (anotara seu nome e as qualidades futebolísticas em um caderninho), acabou convencendo-o.
Seria uma segunda chance para Vinny no esporte que tanto ama. E uma oportunidade para o veterano Mal, com uma equipe reforçada por um craque, ter êxito depois de seguidas tentativas malogradas na Copa dos sem-teto.
Para ter sucesso, Vinny precisaria se adaptar, aprender a conviver em um grupo de desajustados e/ou marginalizados pela sociedade. Seus colegas de time (cinco ao todo) incluíam um refugiado da Síria e um ex-viciado em heroína.
Esse é o grande desafio do individualista Vinny, que reluta em aceitar e valorizar os companheiros, medíocres com a bola nos pés (ou nas mãos, no caso do goleiro) porém ligados uns aos outros pelo convívio, como se fossem irmãos mesmo sem ter o mesmo sangue.
“Jogo Bonito” é uma película sentimental, que mexe com temas fortes, como a falta de um lar e o vício em drogas, e enaltece a importância do trabalho em equipe.
Uma fotografia rica, com belas imagens da capital da Itália (incluindo o Coliseu), conta a favor do quarto filme dirigido pela inglesa Thea Sharrock.
Também lhe dão pontos personagens interessantes que representam seleções rivais da Inglaterra, como a jovem e determinada treinadora do Japão (um time péssimo, porém obediente) e a falante e persuasiva treinadora da África do Sul, que é freira.
Nas disputas entre as seleções, há um ou outro lance de efeito, muitos gols na quadra reduzida (são quatro contra quatro, incluindo os goleiros) e uma atmosfera empolgante na torcida.
Mas “Jogo Bonito” vale menos pelas jogadas bonitas e mais pelos valores que tenta transmitir –união, companheirismo, força de vontade, “fair play”–, além de uma sentença para ser guardada: “Ninguém se salva sozinho. Nós nos salvamos uns aos outros”.
Para quem gosta o mínimo de futebol e não quer ver mais um documentário de eventos midiáticos ou de craques badalados (há vários nas plataformas de streaming), “Jogo Bonito” é uma pedida humilde e agradável.
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