Em uma decisão sem precedentes, a Suprema Corte de Israel derrubou parte da controversa reforma judicial proposta pelo governo de Binyamin Netanyahu nesta segunda-feira (1º) —mesma data em que o Exército do país confirmou o início da retirada de suas tropas da Faixa de Gaza, sinalizando o início de uma nova etapa em sua guerra contra o Hamas.
Alvo de protestos massivos até o início do conflito, a lei vetada pela corte é elemento-chave de uma revisão do sistema judiciário que provocou uma divisão profunda da sociedade israelense e motivou meses de protestos.
O retorno do projeto à pauta tem, assim, potencial para empurrar o país de volta a um cenário de crise política enquanto autoridades preveem a continuação do conflito com o grupo terrorista palestino neste ano que se inicia.
Para a pesquisadora Karina Calandrin, que analisa o governo Netanyahu em um pós-doutorado na USP (Universidade de São Paulo), o momento da decisão da Suprema Corte não é fortuito, ocorrendo em um contexto de desgaste da união nacional em torno da gestão Netanyahu propiciada inicialmente pela guerra.
Afinal, apesar do trauma representado pelo 7 de Outubro, a sensação dos israelenses de que seu país enfrenta uma ameaça existencial diminui à medida que a guerra se arrasta e o cotidiano das áreas distantes da Faixa de Gaza é retomado.
Soma-se a isso uma insatisfação crescente com o próprio Bibi, como o premiê é chamado, sobretudo no que se refere à maneira como ele gerenciou a situação dos reféns —das cerca de 240 pessoas sequestradas pelos terroristas, 115 permanecem em cativeiro, e acredita-se que 15 a 20 possam estar mortas.
Calandrin afirma que o premiê, que não se pronunciou acerca da decisão da corte até a publicação desta reportagem, é o maior derrotado pelo veto da Suprema Corte. Ela lembra que o confronto com o poder Judiciário tem uma dimensão pessoal para Netanyahu, alvo de uma série de acusações de corrupção na Justiça. Para muitos, a tentativa dele e de sua coalizão de diminuir o poder dos juízes seria em última instância uma forma de autoproteção, garantindo a manutenção de sua liberdade.
Além disso, “não há clima” para redigir uma nova lei com uma proposta semelhante àquela derrubada e submetê-la à votação no Parlamento. Daí, diz a professora de relações internacionais da Uniso (Universidade de Sorocaba), a busca do premiê por manter a guerra em curso a todo custo. “Ele sabe que, assim que ela acabar, seu governo cai e ele dificilmente conseguirá se reeleger.”
Calandrin afirma acreditar que o veredicto anunciado pela Suprema Corte só deve aprofundar a polarização que já contaminava a sociedade israelense. “Netanyahu perdeu muito apoio, mas ele ainda tem uma base de eleitores fiéis.” Além disso, ela acrescenta, a guerra é em si um fator de divisão, com parte da população defendendo a ocupação de Gaza por Israel após os enfrentamentos e parte, não.
Porta-voz do Exército israelense, Daniel Hagari afirmou que a saída parcial de Gaza se dá em meio a um impacto cada vez maior na economia do país após quase três meses de mobilização. Tel Aviv já considerava reduzir suas operações, e Washington, seu principal aliado, tem pressionado para que a medida seja tomada o mais rápido possível.
A previsão do Exército é de que cinco brigadas deixem o território palestino; duas delas devem retornar nesta semana para a vida civil e outras três, para treinamentos. “Os combates continuam, e os serviços deles ainda serão necessários”, afirmou Hagari, porta-voz militar.
As brigadas variam de tamanho, chegando a cerca de 4.000 soldados. Como não há divulgação oficial de quanto foram mobilizados para as ações em Gaza, não está claro o número de combatentes que deixarão o território.
“Espera-se que essa medida alivie significativamente os encargos econômicos e permita que eles acumulem forças para as atividades futuras no próximo ano”, disse o Exército. Inicialmente, Israel convocou 300 mil reservistas para o conflito, o que corresponde a cerca de 10% a 15% de sua força de trabalho.
Desde a declaração de guerra ao grupo terrorista em retaliação ao ataque do dia 7 de outubro, autoridades israelenses afirmavam que o conflito teria três etapas principais. O primeiro equivaleu ao intenso bombardeio dos primeiros dias dos enfrentamentos, com objetivo de limpar rotas de acesso para o Exército e forçar a retirada de civis do norte de Gaza. A segunda fase foi iniciada com a invasão terrestre no final de outubro.
Com grande parte da Faixa de Gaza sob controle, o Exército avança para a terceira etapa, disse à Reuters autoridade militar que não pode ser nomeada devido à sensibilidade da questão.
“Isso levará pelo menos seis meses e envolverá missões intensas contra os terroristas. Ninguém está falando em pombas da paz sendo lançadas de Shejaiya”, afirmou o militar à Reuters, referindo-se a um distrito de Gaza devastado pelos combates.
O militar acrescentou que algumas das tropas retiradas de Gaza estariam preparadas para ser enviadas para a fronteira norte com o Líbano, onde o Hezbollah tem trocado disparos e foguetes com Israel.
Com a eclosão da guerra contra o Hamas, a mobilização nacional em torno do conflito arrefeceu os protestos contra a reforma proposta pelo governo Netanyahu. Manifestantes e críticos viam na revisão do sistema judiciário um ataque à democracia israelense.
Um dos pontos centrais e mais controversos da reforma foi justamente o dispositivo derrubado nesta segunda-feira pelo Supremo.
A regra invalidada pelo tribunal pretendia remover uma ferramenta da corte para anular decisões do governo e dos ministros que fossem consideradas “irrazoáveis”. Tribunais israelenses lançam mão desse conceito jurídico, chamado de “padrão de razoabilidade”, ao julgar que determinado ato do governo não levou em conta todos os aspectos relevantes para aquela discussão ou deu peso exagerado a alguns deles e minimizou outros.
Em um resumo de sua decisão desta segunda, o tribunal afirmou que a maioria dos juízes votou para derrubar a lei porque ela prejudicaria severamente a democracia do país —8 do total de 15 magistrados foram contra o texto, disse o Ministério da Justiça de Israel em um comunicado.
Israel não tem uma Constituição escrita, e como os governos quase sempre têm maioria no Parlamento, o Executivo e o Legislativo tendem a atuar em sincronia em vez de funcionarem como contrapesos.
Críticos da mudança defendem que a extinção dessa figura jurídica dá margem a excessos do Legislativo. Isso preocupa não só a oposição como parte da sociedade civil israelense, dada a natureza ultranacionalista e religiosa da coalizão hoje no poder.