Faltando poucos dias para o primeiro aniversário do mais mortífero ataque de sua história, o Israel encara o abismo de uma guerra regional ao encarar de forma inaudita em 18 anos um de seus mais temidos inimigos, o grupo fundamentalista libanês Hezbollah.
Em duas semanas, desestabilizou o rival e, na sexta (27), fez algo que tentava havia 32 anos: matou o líder do grupo, Hassan Nasrallah, jogando ainda mais sombras no futuro do Oriente Médio.
País forjado por guerras desde o parto, em 1948, Israel decidiu elevar a aposta e aceitar o risco do prolongamento de um conflito que já matou mais de 1.200 de seus cidadãos e soldados, 41 mil palestinos e 1.600 libaneses.
Do outro lado, o arquirrival Irã, nomeado como tal pelo premiê Binyamin Netanyahu. A inapetência por uma escalada sem controle, que moderou os momentos agudos de crise até aqui, está sob forte estresse, principalmente com a morte de Nasrallah.
Com a decisão de Israel de não deixar em banho-maria a situação de atrito com o Hezbollah, iniciada em 18 de setembro com pagers explosivos e chegando ao ataque de sexta, a tensão acerca do futuro do Oriente Médio chegou ao paroxismo.
Na última semana, a Folha percorreu o norte do Estado judeu, a fronteira de um conflito que muitos analistas já veem como uma guerra aberta, faltando apenas o elemento do combate terrestre.
Ao longo da fronteira com o Líbano, país cujo governo vive sob a sombra do poderio militar do Hezbollah, a realidade da guerra diária ganhou contornos de rotina no último ano.
“Estamos prontos para tudo. Não existe nenhum outro hospital no mundo capacitado a operar no subterrâneo de uma zona de guerra como o nosso”, disse o vice-diretor do Centro Médico da Galileia, Tsvi Schelag, um oftamologista de fala firme, que trai sua posição de chefe do hospital de campanha de Israel no quadrante ocidental da região.
Ele levou a reportagem por um tour no complexo, que fica em Nahariya, a 10 km da fronteira libanesa —o suficiente para uma de suas fachadas ter sido atingida por um míssil russo Katiúcha durante a guerra de 2006 com o Hezbollah. Fragmentos da arma estão expostos num saguão do hospital.
Por fora, o centro parece um bom hospital de médio porte, com 780 leitos. Uma olhada nos seus quatro andares mostra a realidade: estão vazios, com apenas a triagem e o pronto-atendimento cirúrgico, que durante a visita atendia três feridos por foguetes do Hezbollah, funcionando no térreo.
As salas em que isso ocorre são um grande bunker, reforçadas. No quarto andar, os leitos vazios são banhados pela luz de um sol que permite entrever, pela janela, as montanhas da fronteira libanesa. E a ameaça que vem de lá.
Ela levou, antes da guerra de 2006, para o início da transformação do hospital em um bunker. “Somos a segunda maior instalação médica da região, e a mais próxima da fronteiras. Tudo foi trazido aos poucos aqui para baixo”, diz Schelag, já guiando a visita embaixo da terra.
Nessa configuração, que está em uso desde o dia seguinte ao 7 de outubro de 2023, quando o Hamas matou 1.170 pessoas e sequestrou 251. “Funcionamos com 450 leitos, e temos de deixar uma capacidade ociosa para emergências”, conta o médico.
No andar inferior, há portas à prova de explosão e sistema de purificação de ar em caso de ataque químico ou biológico, como num bunker militar. “Sabemos que a próxima guerra será pior“, diz Sharon Mann, que faz as relações internacionais do hospital.
Nos corredores, mantimentos já são guardados, à espera da eventual invasão terrestre do Líbano, ameaçada por Israel. Enquanto isso, pacientes da região e também refugiados de outros pontos do norte são atendidos.
Essas 60 mil pessoas deslocadas de suas casas são a justificativa oficial de Netanyahu para a escalada —para seus críticos, apenas uma desculpa para manter sua coalizão de partidos radicais coesa, tirando foco do fato de que o Hamas ainda luta em Gaza e que há talvez 64 reféns vivos.
Essas pessoas moravam em 43 comunidades ao longo da fronteira, deixando para trás suas casas e trabalho. “Minha vida acabou em duas horas”, relata Inbal Levy, 62, que agora está em um hotel pago pelo governo na praia de Nachsholim, 60 km ao sul do hospital. Ela morava no kibutz de Bar’am, junto à fronteira libanesa no centro da Alta Galileia.
Cerca de 40 km a nordeste de lá, em She’ar Yashuv, 10% dos 700 moradores decidiram ficar. O lugar é um moshav, comunidade judia que se diferencia dos kibutzim pela liberdade econômica maior. Mas a ideia comunal é semelhante.
“Eu não iria para lugar algum. Vou defender minha casa”, diz Gidi Harari, 67, um militar aposentado que vive com a mulher no local. Ele é o chefe do equivalente à defesa civil do local, dividindo funções com a guarnição de soldados —e o reforço inusitado de manequins colocados em guaritas de concreto no portão principal do moshav.
O surrealismo daquele pedaço de Israel incrustado no sul libanês, que é grande ao circular pelas ruelas de She’ar Yashuv, aumenta quando se dirige por 10 minutos a oeste, rumo a Kiryat Shmona. A cidade era a maior da região, com 22 mil habitantes.
Hoje, é uma vila fantasma. Ruas vazias cruzadas por um outro carro, e até um soldado em patinete elétrico, são mantidas limpas por lixeiros eventuais. Tudo está fechado, com a exceção de um par de mercados que atendem aos 2% de moradores remanescentes.
O motivo é simples: no paredão montanhoso 2 km a leste, está o Hezbollah, assim como nos morros 5 km a norte.
A cidade, como a vizinha e semidestruída Metula, serve de galeria de tiro para foguetes de artilharia que, como a reportagem descobriu da pior maneira quando visitava a região na quarta, chegam antes de o sistema de alerta via celular ter tempo de avisar.
Harari não é otimista. “As forças de Israel estão cansadas. Elas têm que ganhar o público de novo”, diz, acerca de uma eventual guerra terrestre.
Se ela vier, a avaliação do ex-militar não parece fora de foco: pesquisa divulgada pelo Instituto para Estudos de Segurança Nacional divulgada nesta semana vê uma confiança de 65% dos israelenses em vitória, não exatamente um triunfo parar o contestado Netanyahu.