Em dias tão divisionistas, um mesmo sentimento uniu mesquitas e sinagogas: medo. A guerra entre Israel e Hamas avivou ondas de intolerância contra judeus e muçulmanos, como se a identidade religiosa automaticamente tornasse alguém cúmplice de crimes cometidos por um irmão de fé.
Uma sinagoga em Berlim foi alvo de coquetéis molotov na quarta (18). O Conselho Central de Judeus na Alemanha reagiu lembrando do “dia de fúria” convocado por Hizbullah e aliados contra a comunidade judaica. Mais do que uma frase solta, seria “um terror psicológico que leva a ataques concretos”.
Algumas casas da cidade já tinham sido pichadas com estrelas de Davi, ação que emula a opressão antissemita durante o nazismo.
Enquanto isso, a foto de Wadea Al-Fayoume com um chapéu purpurinado onde se lê “happy birthday” circulava pelo mundo. Era seu aniversário de 6 anos. Dias depois, o proprietário da casa que a família de origem palestina alugava esfaqueou o menino. No funeral, um tio disse que suas últimas palavras foram: “Mãe, eu estou bem”.
São amostras brutais de uma violência que apavora judeus e muçulmanos, nutrindo a desumanização do outro lado e dando corda para um ciclo de repulsa mútua.
O pânico tem contaminado também o Brasil. Na esteira da chacina em Israel, o rabino Rogério Cukierman, da CIP (Congregação Israelita Paulista), falou a uma audiência judaica sobre as cenas inimagináveis “de violência e sadismo” que inviabilizaram o que era para ser “uma das datas mais felizes do ano”, a festividade do Simchat Torá.
A tia nonagenária de um dos sócios da CIP, que lhe pedia para levar uma cachaça do Brasil para que fizesse caipirinhas no kibutz onde vivia, foi uma das vítimas do Hamas. Muitos judeus brasileiros conheciam alguém assassinado no dia 7 e têm amigos morando em Israel. São corriqueiras as conversas de vídeo interrompidas por sirenes do outro lado, alertas para um possível ataque de mísseis.
Cukierman reproduz o que o amigo que perdeu a tia lhe disse: a raiva tomava conta dele, mas era preciso resistir a ela. “Não permitir que sejamos definidos pelo ódio ou pelo Hamas é o maior desafio que temos no momento”, afirma o rabino. “Que possamos todos escolher a luz, não a escuridão. Defender-nos sem nos transformar na cópia daquilo que combatemos.”
Ele dá voz à decepção de tantos judeus que se identificam como progressistas e que viram “pessoas que até semana passada admirávamos, com quem marchamos juntos contra o racismo e pela democracia”, tratarem as ações terroristas “como iniciativas genuínas” de libertação palestina.
“O que mais me chocou foi ver pessoas comprometidas com os direitos humanos abrirem mão dos direitos humanos dos israelenses, como se eles não fossem humanos”, acrescenta Cukierman.
Rabino na mesma CIP, Ruben Sternschein diz que incomodou também o silêncio de entidades de direitos humanos que titubearam em condenar o Hamas, como se esse mero gesto sinalizasse apoio a eventuais crimes de guerra por parte de Israel.
O rabinato tem promovido rodas de conversa e acolhido pessoas em depressão, conta. Para Sternschein, não é hora de disputar narrativas históricas sobre quem tem mais direito a que parte da terra. “Não é o momento de geopolítica, é o momento de lutar pela vida de todos.”
O rabino Yossi Schildkraut fala em feridas reabertas. “Na nossa sinagoga, 50% ou mais são filhos, netos ou bisnetos de sobreviventes do Holocausto. Cresceram ouvindo histórias. Fora o medo de ataques em São Paulo, voltou o trauma do Holocausto, sermos assassinados simplesmente por sermos judeus.”
A saúde mental da comunidade se fragiliza não é de hoje, diz Cukierman. “Após o atentado ao supermercado kosher em Paris em 2015 e à sinagoga em Pittsburgh em 2018, passamos a viver com muito mais medo de que algo similar pudesse acontecer em outras partes. O atentado do Hamas leva este medo a novos patamares. Aumentamos significativamente a segurança das instituições judaicas e, mesmo assim, há gente com medo de participar da vida comunitária.”
Abrir o celular é um show de horrores. Grupos de WhatsApp se enxameiam com publicações antissemitas pinçados das redes sociais. Um deles: “É cada judeu existindo que me faz pensar onde foi que Hitler errou”.
O mesmo preconceito, com sinais trocados, incita a islamofobia mundo afora, e muçulmanos no Brasil não são poupados dessa retórica intolerante.
Líderes dizem que judeus ganham muito mais espaço na mídia para denunciar, inclusive, o antissemitismo que sofrem. Isso sem falar em círculos em que a defesa de Israel se confunde com a imagem de um Islã bárbaro. Fenômeno gêmeo ao que se espraiou depois do 11 de setembro de 2001 nos EUA.
“Esses ataques não começaram hoje, nem no ano passado”, diz o xeque Rodrigo Rodrigues, da Mesquita de Florianópolis. “É assim que se constrói um sentimento de perseguição, começa nas redes e se estende para a rua, o metrô, o trabalho. O que escuto é repúdio em relação aos ataques contra civis, e como isso impacta o dia a dia de muçulmanos brasileiros, quando colegas chamam nossos filhos de terroristas na escola.”
Mulheres são alvo preferencial. “Chegou até mim: uma muçulmana, ao entrar no metrô de hijab, escutou gritos de ‘cuidado, mulher bomba, terrorista do Hamas’. Outra pessoa em São Paulo sofreu um cuspe e escutou gritos como ‘volta pra sua terra, o Brasil é Israel’.”
Ele diz perceber “um ataque padronizado de um grupo religioso específico aqui no Brasil”. Evangélicos. Muitos pastores de grande porte, simpáticos ao sionismo, oferecem respaldo irrestrito à contraofensiva israelense em Gaza. Ativariam assim, colateralmente, um imaginário em que o Islã é uma fábrica de radicais carente de um choque de civilização.
Bolhas mais progressistas e academicistas podem passar a impressão de que o mundo se preocupa com com Gaza, mas, fora delas, o estereótipo do muçulmano bárbaro seria mais forte, segundo porta-vozes dos muçulmanos.
Chegam a Rodrigues reclamações de seguidores do Alcorão sobre uma opinião pública tida como enviesada. “Infelizmente, os meios de comunicação em massa não só não tomaram lado, como procuram justificar o extermínio em massa de um povo que há muito tempo está sendo privado de seu próprio território. Vidas palestinas também importam.”
Opinião compartilhada pelo xeque Mohamad al Bukai, da Mesquita Brasil. “O que mais impactou foi como a mídia lidou com o fato, incentivando a guerra e a vingança. Recebi ligações de pais que estão com medo de mandar os filhos para a escola depois do menino esfaqueado nos EUA. Muitos professores acadêmicos estão sendo perseguidos.”
Redes bolsonaristas têm organizado listas com docentes acusados de ser pró-Hamas, muitas vezes sem lastro algum na realidade. Um deles, inclusive, é a favor do Estado de Israel e crítico ao primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. “Não é possível”, disse Michel Gherman, historiador que dá aulas na UFRJ, “acusar um professor judeu e sionista de apoiar o Hamas”.