Os pagers começaram a apitar logo após as 15h30 da terça-feira (17) no Líbano (9h30 no horário de Brasília), alertando os membros do Hezbollah para uma mensagem de sua liderança em um coro de toques, melodias e zumbidos.
Mas não eram os líderes da facção. O recado tinha sido enviado pelo arqui-inimigo do grupo radical xiita e, em questão de segundos, os alertas foram seguidos por sons de explosões, gritos de dor e pânico nas ruas, lojas e casas em todo o Líbano.
As explosões fizeram homens voarem das motocicletas e se chocarem contra paredes, de acordo com testemunhas e imagens de vídeo. Pessoas fazendo compras caíram no chão, contorcendo-se de agonia, com fumaça saindo de seus bolsos.
Mohammed Awada, 52, disse que ele e o filho estavam passando por um homem cujo pager explodiu. “Meu filho ficou louco e começou a gritar quando viu a mão do homem voando para longe dele.”
Até o final do dia, mais de uma dezena de pessoas havia morrido, e mais de 2.700 ficaram feridas, muitas delas mutiladas. No dia seguinte, outras 20 morreram, e centenas se feriram quando walkie-talkies também começaram a explodir misteriosamente. Algumas das vítimas eram membros do Hezbollah, mas outras não; quatro dos mortos eram crianças.
Israel não confirmou nem negou responsabilidade pelas explosões, mas 12 funcionários da Defesa e de inteligência, aposentados e na ativa, dizem que os israelenses estavam por trás disso, descrevendo a operação como complexa e de longa duração. Eles falaram com o The New York Times sob condição de anonimato, dada a sensibilidade do assunto.
As armadilhas dos pagers e walkie-talkies foram o mais recente ataque no conflito de décadas entre Israel e o Hezbollah. As tensões se intensificaram após o início da guerra na Faixa de Gaza, em 7 de outubro do ano passado.
Grupos apoiados pelo Irã, incluindo o Hezbollah, há muito tempo são vulneráveis a ataques israelenses usando tecnologias sofisticadas. Em 2020, por exemplo, Tel Aviv assassinou o principal cientista nuclear iraniano, usando um robô assistido por inteligência artificial controlado remotamente via satélite. Os israelenses também fizeram hackeamentos para frustrar o desenvolvimento nuclear de Teerã.
No Líbano, à medida que Israel eliminava membros relevantes do Hezbollah com assassinatos direcionados, seu líder chegou a uma conclusão: se Israel estava indo para a alta tecnologia, o Hezbollah iria para a baixa.
Ficou claro, pelas palavras de Hassan Nasrallah, que Israel estava usando redes de celulares para localizar as posições de seus integrantes. “Você me pergunta onde está o agente”, afirmou Nasrallah a seus seguidores em um discurso televisionado publicamente em fevereiro. “Eu digo que o telefone em suas mãos, nas mãos de sua esposa e nas mãos de seus filhos é o agente.”
Então, fez um apelo. “Enterre-o. (…) Coloque-o em uma caixa de ferro e tranque.”
Ele vinha pressionando havia anos para que o Hezbollah investisse em pagers, que, apesar de suas capacidades limitadas, poderiam receber dados sem revelar a localização do usuário ou outras informações comprometedoras, de acordo com avaliações de inteligência dos EUA.
Mas a inteligência israelense viu uma oportunidade. Mesmo antes de Nasrallah decidir expandir o uso de pagers, Israel havia colocado em prática um plano para estabelecer uma empresa de fachada que se passaria por uma produtora internacional de pagers.
Aparentemente, a BAC Consulting era uma empresa com sede na Hungria que tinha licença para produzir os dispositivos em nome de uma fábrica taiwanesa, a Gold Apollo. Na verdade, era parte da operação israelense, de acordo com três funcionários de inteligência com conhecimento do caso. Eles disseram que pelo menos outras duas companhias de fachada foram criadas também para mascarar as verdadeiras identidades das pessoas criando os pagers: agentes de Israel.
A BAC assumiu clientes, para os quais produzia uma variedade de pagers convencionais. Mas o único cliente que realmente importava era o Hezbollah, e seus pagers estavam longe de ser comuns. Produzidos separadamente, continham baterias impregnadas com o explosivo PETN, de acordo com os funcionários ouvidos.
Os pagers começaram a ser enviados para o Líbano em 2022 em pequenas quantidades, mas a produção foi rapidamente ampliada após Nasrallah apontar para o risco dos celulares.
Alguns dos temores do líder do grupo extremista foram estimulados por relatos de aliados de que Israel havia adquirido novos meios para hackear telefones, ativando remotamente microfones e câmeras para espionar seus proprietários. De acordo com três agentes de inteligência, os israelenses investiram milhões no desenvolvimento da tecnologia, e a notícia se espalhou entre o Hezbollah e seus aliados de que nenhuma comunicação por celular —mesmo aplicativos de mensagens criptografadas— era segura.
Nasrallah não apenas proibiu celulares em reuniões internas. Ordenou que os detalhes dos movimentos e planos do Hezbollah nunca fossem comunicados por smartphones. Seus comandados tinham de carregar pagers o tempo todo e, em caso de guerra, seriam usados para dizer aos combatentes para onde ir.
Em meados de 2022, os envios dos pagers para o Líbano aumentaram, com milhares chegando ao país e sendo distribuídos entre membros do Hezbollah e seus aliados, de acordo com dois funcionários de inteligência americanos.
Para o Hezbollah, os equipamentos eram uma medida defensiva, mas em Israel a inteligência se referia aos pagers como botões que poderiam ser acionados quando o momento parecesse oportuno. Momento este que, aparentemente, chegou nesta semana.
Falando ao seu Gabinete de Segurança no domingo (15), o primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, disse que faria o que fosse necessário para permitir que mais de 70 mil israelenses expulsos pelos combates com o Hezbollah no norte do país retornassem para casa. Esses residentes, disse ele, não poderiam retornar sem “uma mudança fundamental na situação de segurança no norte”.
Na terça-feira, a ordem foi dada para ativar os pagers. Para detonar as explosões, Israel acionou os aparelhos para emitir um sinal sonoro e enviou uma mensagem em árabe que parecia vinda do comando do Hezbollah. Segundos depois, o Líbano estava em caos.
Com tantas pessoas feridas, ambulâncias se multiplicavam pelas ruas, e logo os hospitais estavam sobrecarregados.
No sul do Líbano, na vila de Saraain, uma menina, Fatima Abdullah, havia acabado de chegar em casa do seu primeiro dia na quarta série quando ouviu o pager de seu pai começar a apitar, disse sua tia. Ela pegou o dispositivo para levá-lo a ele e estava segurando quando explodiu, matando-a. Fatima tinha 9 anos.
Na quarta-feira (18), enquanto milhares se reuniam nos subúrbios do sul de Beirute para um funeral ao ar livre de duas pessoas mortas nas explosões, o caos irrompeu novamente: outra explosão.
Em meio à fumaça, as pessoas em luto entraram em pânico pelas ruas, buscando abrigo nos saguões de prédios próximos. Muitos estavam com medo de que seus telefones, ou o celular de uma pessoa ao lado deles na multidão, estivesse prestes a explodir.
“Desliguem seus telefones!” alguns gritavam. “Tirem a bateria!”. Logo uma voz em um alto-falante no funeral incentivou todos a fazerem isso.
Para os libaneses, a segunda onda de explosões confirmou a lição do dia anterior: eles agora vivem em um mundo em que o mais comum dos dispositivos de comunicação pode ser transformado em instrumento de morte.
Uma mulher, Umm Ibrahim, parou um repórter no meio da confusão e implorou para usar um celular para ligar para seus filhos. Com as mãos tremendo, ela discou um número e então deu uma ordem, aos gritos: “Desliguem seus telefones agora!”