O presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, disse, em entrevista exclusiva à BBC News Brasil e à BBC News Mundo, que o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, tenta “incutir medo no povo” guianense e não descartou a instalação de uma base norte-americana no país em meio às tensões em torno da região conhecida como Essequibo, rica em minérios e petróleo.
“Maduro tenta incutir medo no povo da Guiana”, disse o presidente. “Faremos tudo o que for necessário para garantir a soberania e a integridade territorial da Guiana”, diz Irfaan Ali ao ser questionado se seu governo permitiria a instalação de uma base norte-americana no país.
A possibilidade de que o conflito pudesse levar à instalação de uma base estrangeira na região amazônica é um dos temores de integrantes do governo brasileiro, entre eles o assessor especial para assuntos internacionais da Presidência da República, Celso Amorim.
A entrevista do presidente da Guiana foi concedida na manhã de segunda-feira (11). Na quinta-feira (14), Irfaan Ali e o líder venezuelano deverão ter um encontro presencial em Trinidad e Tobago no qual deverão discutir a questão de Essequibo.
Nas últimas semanas, a região ganhou destaque internacional após o regime venezuelano realizar um plebiscito sobre a criação de um novo Estado na área de Essequibo e depois que Maduro anunciou a indicação de um governador para o futuro estado.
Em meio à escalada sobre o assunto, o Ministério da Defesa do Brasil reforçou a segurança em Roraima, Estado que faz divisa com ambos os países em crise.
Na semana passada, o governo norte-americano comunicou a realização de exercícios militares em parceria com a Guiana no espaço aéreo do país. Na mesma semana, o Departamento de Estado dos Estados Unidos anunciou que daria suporte “inabalável” à soberania da Guiana.
Essequibo é uma região disputada pelos dois países há mais de um século. A área tem aproximadamente 160 mil quilômetros quadrados e é na sua costa que a petroleira ExxonMobil descobriu, em 2015, reservas equivalentes a 11 bilhões de barris de petróleo. Nos últimos anos, a economia do país de aproximadamente 800 mil habitantes foi uma das que mais cresceu no mundo. Seu produto interno bruto (PIB) deverá crescer 25% este ano, depois de ter expandido 57,8% em 2022.
Desde as descobertas de petróleo, o regime venezuelano vem aumentando o tom em torno da região.
No dia 1º de dezembro, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), provocada pelo governo guianense, emitiu uma sentença determinando que a Venezuela não poderia tomar medidas para incorporar Essequibo ao seu território. O regime de Nicolás Maduro, no entanto, anunciou não reconhecer a legitimidade da Corte para resolver a disputa.
Nas ruas de Georgetown, a elevação da temperatura do assunto é visível no trânsito da capital. Em diversos pontos da cidade, é possível ver cartazes e outdoors com os dizeres: Essequibo belongs to Guyana (Essequibo pertence à Guiana, em português).
Na entrevista à BBC News Brasil à BBC Mundo, o presidente do país diz ainda que é importante conversar com “os vizinhos”, mas que um possível acordo sobre recursos petrolíferos de Essequibo está fora de questão. “Isso não acontecerá”, disse.
Confira os principais trechos da entrevista.
O senhor terá uma reunião com Maduro na quinta-feira. O que o senhor espera desse encontro e o que gostaria de dizer a ele?
Em primeiro lugar, a Guiana é um país pacífico. Nós não somos os agressores. Não ameaçamos ninguém. Não ameaçamos com o uso da força. Ao mesmo tempo, a Guiana fará tudo o que estiver ao seu alcance, dentro dos domínios do direito internacional, para garantir que a nossa integridade territorial e soberania fiquem intactas e em vigor.
Nossas fronteiras foram resolvidas em 1899 (ano em que foi emitida a Sentença Arbitral de Paris, que definiu as atuais fronteiras da Guiana e Venezuela). (…) Todos os nossos parceiros nesta região, incluindo o Brasil, a Caricom (Mercado Comum e Comunidade do Caribe), a Celac ( Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), os EUA, o Hemisfério Ocidental e a comunidade internacional respeitam a sentença arbitral de 1899 (…).
Sobre as conversas de quinta-feira, como bons vizinhos, temos que conviver e trabalhar para garantir que esta região continue a ser uma região de paz e estabilidade. (…) Essas conversas visam reduzir as ameaças de uso da força por parte da Venezuela, porque a Guiana não faz ameaças a ninguém.
Mas o que exatamente o senhor gostaria de dizer a Maduro?
Eu diria a ele muito claramente que a Guiana é um país que vive em paz. Não temos outra ambição senão a segurança e a proteção da nossa soberania e integridade territorial. A nossa única ambição é avançar como país de forma pacífica, trabalhar numa coexistência pacífica com os nossos vizinhos, apoiar os nossos vizinhos nos seus próprios desenvolvimentos. E esperamos respeito à nossa fronteira, que a Venezuela não aja de forma imprudente ou aventureira e que trabalhemos juntos para garantir a paz e a estabilidade da nossa região.
O senhor teme que o regime venezuelano possa realmente invadir Essequibo?
Não temos medo. O que temos é que nos preparar para qualquer eventualidade por causa da retórica que vem da Venezuela. A Venezuela fez um plebiscito e antes disso, fomos à Corte Internacional de Justiça para tomar medidas cautelares devido ao fato de que algumas das questões do plebiscito apontavam para a anexação de Essequibo. Então, estamos muito preocupados com isso. Nós envolvemos nossos parceiros internacionais. Temos uma longa colaboração com o Departamento de Defesa dos EUA e temos muitos programas de treinamento e exercícios conjuntos que estão sendo realizados e que vão continuar. Vamos acionar e trabalhar de forma constante com a comunidade internacional para garantir que a Venezuela não aja de uma forma que afete a nossa integridade territorial e a nossa soberania.
Na semana passada, houve exercícios entre militares dos EUA e da Guiana. O senhor pediu algum tipo de apoio militar norte-americano no caso de uma invasão realizada pela Venezuela?
A cooperação militar e de defesa entre os EUA e a Guiana tem sido muito ampla. Tudo isso faz parte da nossa estratégia de defesa e ela continuará a crescer. Teremos mais programas de formação, mais intercâmbios conjuntos e, claro, não só com os EUA. Estamos falando com vários dos nossos parceiros em relação à Venezuela e à sua retórica.
Seu governo está disposto a permitir a criação de uma base militar dos EUA dentro da Guiana?
Como disse antes, faremos tudo o que for necessário para garantir a soberania e a integridade territorial da Guiana. Estamos monitorando todas as ações da Venezuela. Trabalharemos monitorando de forma abrangente o comportamento da Venezuela.
Estamos analisando toda a inteligência e no momento certo tomaremos a decisão apropriada. Mas custe o que custar, com os nossos parceiros bilaterais, com os nossos parceiros internacionais para proteger a segurança, a integridade territorial e a soberania da Guiana, nós o faremos.
Mas isso inclui uma base militar americana na Guiana?
Isso inclui o apoio de todos os nossos aliados, não importa o formato que isso venha a ter. Não posso ser mais claro que isso. Devemos garantir que a segurança, a integridade territorial e a soberania do nosso país estejam asseguradas e protegidas. Esse é o nosso objetivo principal.
O regime venezuelano alega que, como Essequibo é uma região em disputa, a Guiana não poderia ter emitido licenças para empresas de petróleo como a ExxonMobil. Como o senhor responde a essas alegações?
Essequibo pertence total e integralmente à Guiana. Isto foi resolvido em 1899. A Venezuela e a Guiana participaram no estabelecimento dos marcos fronteiriços. (…) Temos todos os direitos de emitir qualquer licença, fazer qualquer investimento e o desenvolvimento que quisermos.
Há poucos dias, Maduro disse que a Guiana e a ExxonMobil deveriam se sentar com a Venezuela para discutir esse assunto. Já que o senhor terá essa reunião com ele, existe algo com o que o senhor estaria disposto a se comprometer para diminuir as tensões?
O que é interessante é que, para a população local na Venezuela, o presidente Maduro diz que a Exxon é o imperialismo. Ainda assim, ele está trabalhando ativamente para fazer com que a Chevron, a BP [petrolíferas] e até mesmo outras empresas multinacionais voltem a investir na Venezuela.
Nós temos muitas coisas para discutir. Temos a segurança energética regional, o desenvolvimento da região, como podemos trabalhar juntos nas mudanças climáticas? Como podemos coexistir? Como podemos reduzir as tensões? Mas não vamos comprometer nenhum desenvolvimento que tenhamos em Essequibo ou a posição do Estado de que esse caso será determinado pela Corte Internacional de Justiça.
Existe algum meio-termo que a Guiana e Venezuela poderiam alcançar durante essa reunião?
Meio-termo em relação a quê?
Em relação à controvérsia envolvendo Essequibo.
O tribunal [Corte Internacional de Justiça] determinará o mérito da controvérsia. Não há negociações sobre isso.
E sobre as reservas de petróleo? Existe um meio-termo sobre o qual o senhor estaria disposto a discutir com Maduro?
Se é das reservas de petróleo que você está falando, então são reservas que pertencem à Guiana. E queremos desenvolver as nossas reservas de petróleo no contexto da segurança energética regional. Se há investimentos na região que alguém queira discutir, inclusive da Venezuela, podemos olhar e examiná-los, mas todas as reservas de petróleo são da Guiana.
O senhor disse que conversou com o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva. Gostaria de perguntar: o senhor acredita que Lula está fazendo o suficiente para diminuir as tensões?
Antes de mais nada, o presidente Lula tem sido muito ativo. Estivemos em contato em mais de uma ocasião. Ele deixou bem claro que apoia a Guiana, que apoia os termos do acordo de 1899 e que apoia o processo do direito internacional para garantir que a Corte Internacional de Justiça seja respeitada. Ele também me procurou para conversar e promover uma reunião com o presidente Maduro para diminuir a tensão e garantir que a ameaça da força seja retirada da equação. E, em respeito ao presidente Lula e a todos os líderes da região, estamos tendo esta conversa.
O presidente Lula ofereceu algum tipo de apoio militar?
O Brasil é um dos nossos parceiros. Tivemos muitos compromissos militares juntos. Tenho certeza que as Forças de Defesa da Guiana e de seus homólogos estão em discussões contínuas.
Ainda não está claro para mim: o presidente brasileiro ofereceu algum tipo de apoio militar em relação a esta crise no caso de uma invasão venezuelana?
Os militares brasileiros e da Guiana estão conversando. Isso é tudo que posso dizer.
Dados os acontecimentos recentes, o senhor considera fortalecer as forças militares da Guiana?
Isso é precisamente o motivo pelo qual nós estamos tendo esses programas de treinamentos e esses intercâmbios. Porque nós temos que fortalecer nossas forças de defesa para preservar a paz e garantir que nossas fronteiras estejam protegidas.
Mas neste momento a Guiana tem receitas enormes provenientes das reservas de petróleo. O senhor vai usar essas receitas para fortalecer suas forças armadas?
Nos últimos três anos, temos trabalhado num programa abrangente para recapitalizar, modernizar e equipar as forças armadas. Portanto, sim, estamos trabalhando num pacote de investimentos estratégicos para as Forças de Defesa da Guiana, não apenas do ponto de vista material, mas também do ponto de vista dos recursos humanos.
Essa crise em torno de Essequibo acelerou esses planos?
Nosso plano era muito agressivo. Tínhamos um plano muito estratégico e esse plano está se desenrolando dentro do prazo. É claro, estamos pesando todas as opções e onde estão as necessidades. Estamos avançando em certos aspectos do plano e esses pontos foram imediatamente adiantados.
A Venezuela tem um exército muito maior e mais bem equipado que o da Guiana. Como a Guiana reagiria a uma invasão militar vinda da Venezuela?
Nós temos amigos. Nós temos aliados. Temos trabalhado com a comunidade internacional. A Guiana não está sozinha. Eu não entraria no detalhe dos nossos relacionamentos, mas nós temos conversado com a França, o Reino Unido, com os EUA e nossos amigos não vão permitir que a Guiana seja prejudicada.
Qual a situação atual das pessoas que vivem em Essequibo? Alguns deles têm dito que estão preocupados.
É claro que, quando temos um presidente fazendo ameaças, as pessoas ficam preocupadas e elas têm todo o direito de estar. Mas nós garantimos a todos os cidadãos da Guiana, especialmente aos que vivem na fronteira, que não há absolutamente nada a temer. Estamos trabalhando todos os dias para garantir que a soberania e a integridade territorial da Guiana permaneçam intactas e que iremos avançar nosso trabalho sem qualquer medo.
Alguns membros da oposição aqui na Guiana têm alegado que o seu governo deveria restringir direitos civis de venezuelanos com cidadania guianense. Um desses direitos seria o direito de voto. O seu governo está disposto a restringir o direito de voto dos venezuelanos?
Somos um país pacífico. Trabalhamos com as normas internacionais. Temos migrantes que vêm da Venezuela e os tratamos com dignidade. Queremos dar-lhes os direitos básicos. Isso é quem somos como guianenses. Não podemos permitir que Maduro ou os instrumentos de Maduro mudem quem somos como povo, como país, (…) a forma como tratamos os nossos semelhantes. Isso não pode mudar com base na retórica.
Gostaria de voltar em um tema para que o assunto fique mais claro. A crise em Essequibo fez com que seu governo acelerasse os planos para fortalecer suas forças armadas?
Como eu disse, temos um plano estratégico para fortalecer as nossas forças armadas. (…) Esse plano está em fase de implementação. À medida que a ameaça aumenta, estamos acelerando o plano. Há algumas atividades que estavam mais adiante e que estamos trazendo para um prazo imediato. Então, sim. Estou confiante de que o plano foi reestruturado e acelerado e isso é consequência do ambiente em que estamos.
Minha próxima pergunta é sobre outra crise: a climática. Durante a COP28, cientistas e ambientalistas têm dito que o mundo deveria iniciar uma eliminação gradual dos combustíveis fósseis. Mas seu país depende bastante das receitas provenientes da exploração do petróleo. Como o senhor responde àqueles que dizem que seu país está indo na direção oposta à da ciência?
Digo que o meu país é, totalmente, um modelo para o mundo. Temos uma floresta do tamanho da Inglaterra e da Escócia juntas. Essa floresta estoca 19,5 gigatoneladas de carbono. Temos a taxa de desmatamento mais lenta do mundo. Embora 65% da biodiversidade mundial tenha sido perdida nos últimos 50 anos, a nossa biodiversidade está intacta. Qual é o valor disso? Quem está pagando por isso? (…) Estamos seis pés (aproximadamente 1,8 metro) abaixo do nível do mar, uma área onde vive 80% da nossa população. Por isso temos que investir em drenagem e irrigação. Quem está financiando isso? Temos que financiar isso.
O senhor apontou uma questão muito importante: o fato de que seu país tem uma grande quantidade de terra abaixo do nível do mar. Isso significa que, se os cientistas estiverem certos, as mudanças climáticas podem afetar uma grande parte do seu país.
É por isso que temos que investir nas defesas marítimas. Por isso que temos que garantir que obteremos receitas para investir nas defesas marítimas.
Então o que o senhor acha das alegações de que seu país está indo na contramão do que diz a ciência?
Totalmente infundadas.
Para finalizar, a Venezuela tem, como eu disse, um exército muito maior em comparação com o da Guiana. O senhor se sente ameaçado pelas alegações de Maduro?
Maduro tenta incutir medo no povo da Guiana. Definitivamente, ele usou a ameaça da força como meio de demonstrar seu plano. Mas não somos um povo que sucumbiria ao medo e à sua ameaça. O que estamos fazendo é planejar, trabalhar com os nossos parceiros, preparando-nos e certificando-nos de que estamos em condições de garantir todo o nosso território, soberania e integridade territorial. Portanto, não estou preocupado com a ameaça dele. Estou preocupado com essa ameaça.
O senhor estaria disposto a dividir as receitas do petróleo de Essequibo com a Venezuela se essa for uma questão levada a esse encontro com Maduro?
Essa é uma posição muito interessante. A Venezuela compartilharia com a Guiana todas as receitas que obteve nos últimos cem anos com o petróleo? Você não pediria que eles compartilhassem o que é deles. Essas receitas são da Guiana. Essas são nossas riquezas dentro do nosso território. Como vamos compartilhar isso? (…) Dizer que temos que celebrar um acordo de partilha de receitas com a Venezuela é um insulto ao nosso país e ao seu povo. Isso nunca acontecerá. (…) Acho que as pessoas nos subestimam porque somos uma população pequena, mas somos uma população pequena e responsável, com moralidade, ética, boa governança, democracia, liberdade do nosso lado e com grandes parceiros internacionais.
Então, o que o senhor acha do que ele disse sobre a Guiana e a ExxonMobil dever se sentar com a Venezuela para discutir o assunto?
Ele pode dizer o que quiser. Ele não é Deus. Ele não é o presidente da Guiana. Você estava falando com o presidente. Ele não tem autoridade para ligar para qualquer empresa que opere na Guiana ou qualquer indivíduo que opere aqui para qualquer reunião. Ele está fora do lugar. (…) O investimento da ExxonMobil está na Guiana. (…) Como é que ele espera conseguir investimentos para a Venezuela se quer desestabilizar a região ou se quer usar uma ameaça de força que não ajudará ninguém?