Um dia depois de um ataque atribuído a Israel matar o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, durante uma visita a Teerã, o governo do Irã discute com seus aliados um plano de retaliação contra o Estado judeu.
Como fazê-lo sem disparar uma guerra regional é a questão que atormentará os representantes do autodenominado Eixo da Resistência que, segundo a agência Reuters e a mídia árabe, deverão se encontrar na capital iraniana para debater as opções.
Eles já estavam, em sua maioria, na cidade para a posse do novo presidente do país, Masoud Pezeshkian, na terça (30). Alguns estavam alinhados, ao lado de Haniyeh e de um desavisado Geraldo Alckmin numa foto que virou um clássico das redes: o chefe do grupo terrorista Jihad Islâmico e um enviado dos rebeldes houthis do Iêmen.
Horas depois, Hanieyh foi morto por um míssil que Israel não admitiu ser seu, apesar de o premiê Binyamin Netanyahu ter ido à TV celebrar uma série de vitórias militares contra seus adversários —incluindo, aí oficialmente, a morte do número 2 do Hezbollah libanês em um ataque em Beirute.
Todos os sobreviventes da foto, salvo é claro o vice brasileiro, são instrumentais para os desígnios de Teerã. Deverão juntar-se a eles membros do Hezbollah, principal preposto regional da teocracia iraniana, e de grupos pró-Irã do Iraque e da Síria.
É incerto se o governo sírio, adversário de Israel, entrará na dança, dado que a ditadura local já tem muito trabalho para administrar a guerra civil que a consome desde 2011, levando à presença de forças russas e da Otan em partes de seu território.
Na véspera, segundo o jornal americano The New York Times, o líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, havia encomendado um ataque direto ao território israelense às suas Forças Armadas.
Nos 45 anos de existência como República Islâmica, o Irã fustigou Israel, os Estados Unidos e seus aliados por meio de uma rede de prepostos regionais. Em 2022, Haniyeh disse que o Hamas recebia US$ 70 milhões de ajuda iraniana anualmente, por exemplo.
Tudo mudou com o conflito iniciado quando o grupo terrorista palestino lançou seu audacioso ataque contra o Estado judeu em 7 de outubro passado, matando 1.200 pessoas e tomando 250 reféns. A guerra na Faixa de Gaza, território que controlava desde 2007, veio a seguir, transformando-se num pesadelo humanitário com mais de 39 mil mortos.
Ali, o Hamas já parecia clamar pela intervenção de seus aliados, mas foi frustrado. O Hezbollah iniciou um atrito de intensidade variável no norte israelense. Os houthis, por sua vez, emergiram como atores regionais, travando o comércio marítimo mundial com ataques no mar Vermelho e o ocasional drone lançado contra Israel.
Israel pressionou também, com ataques pontuais fora de suas fronteiras. Em abril, matou representantes da Guarda Revolucionária do Irã numa representação do país em Damasco, cruzando uma linha vermelha para Teerã.
O ataque com centenas de mísseis e drones contra Israel impressionou na escala e na comprovação do vasto arsenal balístico e de cruzeiro do Irã, mas mais ainda na defesa: Tel Aviv teve apoio de americanos, britânicos e emiratis para derrubar a maior parte das armas, que não causaram danos significativos.
A resposta israelense foi limitada a um ataque pequeno perto de instalações do programa nuclear do país. Isso evitou uma escalada, de resto indesejada por todas as partes, a começar pelo Irã: o país vive momento de instabilidade política e crise econômica. Por outro lado, a linha-dura do regime pode ver num conflito a chance de galvanizar apoio ao governo.
No caso dos EUA, fiadores de Tel Aviv, uma guerra indesejada que fará subir o preço da gasolina viraria imediatamente peça de campanha de Donald Trump contra a administração da vice Kamala Harris, virtual candidata democrata com a desistência de Joe Biden de concorrer.
Agora, com a aposta redobrada de Netanyahu na “manu militari”, os desafios estão postos para o Irã. Se optar por um ataque coordenado com houthis e o Hezbollah, arrisca uma guerra total.
Do ponto de vista de estrago, se a força total for usada, Israel pode sofrer bastante —mas o mesmo vai ocorrer com os iranianos, que acabam de eleger um azarão moderado presidente como forma de protestar contra o regime. Os houthis mostraram aptidão para a disrupção, e o Hezbollah é visto como uma força formidável, com mais de 150 mil mísseis e foguetes prontos.
Se Khamenei fizer algo focado e algo telegrafado, permitindo dizer ao público interno que agiu e ao mesmo tempo mantendo algum comedimento, talvez evite o pior cenário para ele. No começo da guerra, os EUA demonstram prontidão em enviar porta-aviões e submarino nuclear à região; é quase certo que repetirão a dose se preciso.
O problema desse cenário, para o cálculo iraniano, é a tréplica inevitável que virá de Tel Aviv. Ao sinalizar que sabe onde atingir o programa nuclear do Irã, na região de Isfahan (centro do país), com a ação de abril, Israel mostrou seu alvo.
Um bombardeio mais devastador pode tirar dos aiatolás a maior ficha de barganha que possuem, a possibilidade de terem a bomba atômica. E Israel mantém intacto seu arsenal de cerca de 90 ogivas nucleares, único na região.
Há ainda o papel de outras potências que apoiam o Irã, como a Rússia em choque com o Ocidente e a Turquia, que faz parte da aliança militar dos EUA. Vladimir Putin tem presença militar na Síria, mas é altamente improvável que se envolva numa segunda conflagração enquanto trata de sua guerra na Ucrânia.
A China, aliada de Putin que havia patrocinado a reaproximação entre Arábia Saudita e os rivais iranianos, além da paz entre Hamas e a Autoridade Nacional Palestina, observa com cautela o cenário. Egito, Jordânia e países do golfo Pérsico querem ver Teerã pelas costas, mas não podem fazer isso às expensas da tragédia em curso em Gaza, o que amarra suas opções.
Com tantas variáveis na mesa, é fácil entender por que analistas acreditam que esse seja um ponto de inflexão na história recente do Oriente Médio.