O multilateralismo tem enfrentado dificuldades ultimamente, especialmente nas Nações Unidas. O Conselho de Segurança da ONU não conseguiu impedir a invasão da Ucrânia pela Rússia. As possibilidades de cessar-fogo na Faixa de Gaza e no Líbano continuam evasivas.
As cúpulas da COP falharam em seus esforços para atingir as metas climáticas globais e em estimular ações concretas. Os próprios Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU não estão apenas fora dos planos –estão retrocedendo.
De fato, os valores da ONU sobre paz, segurança e cooperação parecem muito distantes num momento em que múltiplas guerras estão em curso, o protecionismo está em ascensão e o mundo está se dividindo em coalizões e blocos.
Mas mesmo em meio a retrocessos geopolíticos, a cooperação global ainda é possível. Nos dias 22 e 23 de setembro, a Assembleia-Geral da ONU fez sua primeira Cúpula do Futuro. Foi, entre outras coisas, um teste da capacidade da organização de enfrentar um dos maiores desafios transnacionais do mundo: a inteligência artificial. Por mais surpreendente que possa parecer, as Nações Unidas passaram no teste.
Não é exagero dizer que a inteligência artificial estimulou uma das respostas políticas mais rápidas e robustas da memória recente. Há pouco mais de um ano, o secretário-geral da ONU, António Guterres, convidou as partes interessadas para dizer como o mundo poderia direcionar a IA a serviço da humanidade.
Ele sabia que, assim como a resposta inicial do mundo às mudanças climáticas, as políticas relacionadas à IA corriam o risco de fracassar. Muitas abordagens eram fragmentadas e a maioria deixava de fora o chamado Sul Global (jargão impreciso para os antigos países emergentes), no qual 118 países não faziam parte de nenhum quadro de governança da inteligência artificial.
Juntos, servimos como relatores para o Corpo Consultivo de Alto Nível sobre IA do secretário-geral (HLAB), estabelecido para enfrentar esse desafio digno. Os 39 membros do nosso grupo vêm de todos os continentes, refletindo a diversidade do mundo, e incluem representantes do governo, da academia, da sociedade civil e das empresas de tecnologia. Foi o primeiro esforço genuinamente global para governança da IA em nome de todo o mundo.
Estamos satisfeitos que várias de nossas recomendações tenham sido adotadas no Pacto Digital Global, um quadro abrangente para a governança global da tecnologia digital e da IA que por sua vez foi adotado, em 22 de setembro, pelos estados membros da ONU na Cúpula do Futuro.
Esse acordo foi uma façanha de cooperação global, abrangendo divisões geopolíticas apesar de todas as diferenças que separam os Estados Unidos, a China e a Europa, o Ocidente e o Sul Global, além dos governos e do setor privado (especialmente as empresas de tecnologia).
Considere uma de nossas recomendações que em princípio foi aprovada para implementação: o estabelecimento de um Painel Científico Internacional sobre IA.
Partimos do pressuposto de que, para governar uma questão tão complexa quanto a IA, deveríamos ter um entendimento comum da tecnologia e de seus potenciais riscos e impactos entre países e culturas.
Aprendemos essa lição da maneira mais difícil com as mudanças climáticas. Embora muitos agora debatam como enfrentar a crise climática, não há debate sério sobre se devemos enfrentá-la; as evidências fornecidas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) são muito fortes.
Um painel intergovernamental semelhante sobre IA empreenderia o trabalho difícil, mas fundamental, de analisar os desenvolvimentos contínuos na tecnologia, dando aos formuladores de políticas uma base factual e independente para informar metas, debates e decisões políticas.
Mas o que mais nos entusiasma é a perspectiva de garantir que a IA beneficie a todos.
Ao contrário das mudanças climáticas, onde há sérios compromissos de curto prazo para reduzir emissões, fomentar o crescimento econômico e alcançar a equidade (com poderosos interesses estabelecidos que se opõem a uma transição pós-carbono), a IA é uma questão transnacional rara cujas políticas são de soma positiva.
A ampla disponibilidade de IA, se compartilhada com segurança e supervisionada para respeitar o direito internacional e as liberdades fundamentais, não deve ameaçar existencialmente governos e empresas incumbentes. Em vez disso, deve catalisar oportunidades de ganho mútuo.
Há uma demanda tremenda por tecnologias como a IA –e entusiasmo por seu potencial para ajudar a resolver todos os tipos de objetivos delineados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Da saúde pública e educação ao crescimento econômico e mitigação climática, a IA pode ser uma tecnologia revolucionária. Mas sem a infraestrutura e os mecanismos para supervisionar seu crescimento transformador, essa oportunidade fomentará uma maior divergência global, com as populações mais pobres e vulneráveis mais uma vez ficando para trás. Estamos determinados para que isso não aconteça.
É por isso que, além de uma base de conhecimento comum, recomendamos iniciativas que ampliem o acesso de todos os países e comunidades à IA. Desde talentos até padrões, dados e financiamento, a ONU e seus parceiros podem ajudar a resolver lacunas em recursos e infraestrutura para garantir que ninguém fique para trás na revolução da IA.
Há aqueles, é claro, que questionam o papel da ONU na governança da IA. Certamente, alguma governança deve ocorrer no nível de Estado. Muito também está sendo feito pelas próprias empresas de tecnologia que desenvolvem os modelos .
Mas, como a internet antes dela, as oportunidades da IA são um bem público global (assim como a segurança da IA). A ONU é o único órgão verdadeiramente global com legitimidade para reunir os governos do mundo e as partes interessadas, além da capacidade de garantir quaisquer acordos resultantes.
Isso começa com colocar o mundo na mesma página –não para obrigar a governança, mas para alinhar as características, natureza e escala das oportunidades e desafios da IA. Com a visão certa, ferramentas e liderança política, podemos mobilizar os recursos para garantir que a IA cumpra sua promessa.
Das mudanças climáticas à saúde pública e à proliferação nuclear, o mundo recorreu à ONU para resolver seus problemas globais mais complexos. Histórias dolorosas de conflitos armados, desastres humanitários, crises ambientais e problemas econômicos destacam a falha da comunidade internacional em enfrentar o desafio.
Mas, ao enfrentarmos nossa tecnologia mais revolucionária e potencialmente disruptiva até agora, o Pacto Digital Global prova que ainda há esperança para o multilateralismo em um mundo geopolítico fragmentado.