“Usted dijo perpetua” (você disse perpétua). É assim que, em “O Segredo dos Seus Olhos”, o personagem Ricardo Morales (Pablo Rago) justifica a Benjamin Espósito (Ricardo Darín), o fato de ter feito justiça por conta própria e de ter mantido em cativeiro, por décadas, o assassino de sua esposa, que depois de ser preso e condenado, foi simplesmente liberado por ser membro da Triple AAA (o esquadrão da morte peronista).
O cinema não funciona como a Justiça. Mas sempre me lembro dessa passagem do vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010 quando ouço vozes a pedir anistias, prisões domiciliares por idade ou doença, ou simplesmente a liberdade pura e simples para os que cometeram crimes hediondos, contra a humanidade, como os que Morales, ainda como oficial menor, realizava. Durante os anos 1970, além de suas tarefas, por diversão, também estuprava também moças inocentes.
Na última semana voltou-se a discutir a saída ou não da prisão do provecto ex-ditador peruano Alberto Fujimori, 85. É certo que sua condenação jamais disse “perpétua”, mas sobre ele pesam penas como as de 25 anos por abusos de direitos humanos (massacres de La Cantuta e Barrios Altos, além de sequestros), mais seis anos por corrupção e, o que é pior, as centenas de milhares de denúncias sobre as quais jamais respondeu e que continuam em aberto na Justiça peruana.
Vem à minha memória, numa tórrida tarde de Piura, a conversa que tive com Victoria Vigo. Em abril de 1996, durante a gestação de seu terceiro filho, ela foi a uma clínica e ouviu as seguintes palavras: “Seu filho morreu e você foi esterilizada”.
“Não tinham pedido permissão nem sequer a meu companheiro para o procedimento”, contou, em seu espanhol precário —seu idioma do dia a dia era o quéchua.
Ela e outras 250 mil mulheres pedem ainda hoje o julgamento por essas esterilizações forçadas impostas pelo regime de Fujimori numa política de “planificação familiar” para “combater a pobreza”. O caso dessas mulheres é um processo pendente contra o ex-ditador. Alegações de má saúde o mantiveram longe de ter que responder às evidências que a Justiça peruana já tem amontoadas. Por enquanto.
Não por acaso isso me vem à tona agora, em Buenos Aires, às vésperas da chegada de Javier Milei à Presidência.
Sua vice, Victoria Villarruel, é uma negacionista da violência do Estado e prefere acreditar que, se não fossem os militares, os montoneros tomariam o poder. A tese é comprovadamente falsa, pois nem Montoneros nem o Exército Revolucionário do Povo (ERP) ocuparam território ou cometeram atentados que abalassem o poder.
Na ESMA, centro de torturas da ditadura argentina, morreram apenas dois guerrilheiros, em fuga. Ali dentro, milhares foram torturados, mulheres pariram no cárcere para verem seus filhos entregues aos militares antes de serem assassinadas.
Villarruel pede indultos e prisões domiciliares a repressores idosos, quer indultar a todos e julgar crimes de civis que já prescreveram há décadas. A vice de Milei, que é advogada e deveria saber isso de cor, está ciente de que um crime cometido pelo Estado não prescreve, mas segue ocorrendo todos os dias. Crimes de um civil têm prazo de validade.
Quem assistiu a “Argentina, 1985” viu apenas os julgamentos dos generais, mas essa não é toda a história. Os juízes promoveram, no tempo jurídico em que isso era o correto, julgamentos de guerrilheiros, e houve muitas prisões.
Villarruel, agora vice-presidente da República, está prestes a armar uma guerra contra o que de mais valioso a Argentina construiu em seus 40 anos de democracia. Em resposta a esses projetos de liberar repressores, deveriam valer as palavras do personagem de Rago: “Vocês disseram perpétua”.
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