Ana, 23, havia chegado aos Estados Unidos fazia apenas uma semana quando conversou com a Folha enquanto trabalhava no caixa de um restaurante mineiro em Newark, estado de Nova Jersey, uma região tomada por brasileiros.
Como boa parte da comunidade instalada ali, Ana entrou ilegalmente no país —seu nome completo será preservado. Acompanhada do marido e dos dois filhos, um de 1 ano e outro de 3, ela cruzou a fronteira com o México.
A família é parte do contingente recorde de mais de 9 milhões de pessoas que tentaram entrar no território americano durante o governo Joe Biden, quase o dobro do registrado nos sete anos anteriores. Em ano de eleição presidencial, a imigração se tornou um dos principais problemas do país na visão de americanos –em 3 de 4 pesquisas Gallup disponíveis até agora, ficou em primeiro lugar, à frente de economia, governo e inflação.
Nessa frente, Donald Trump é visto pela maior parte dos americanos como mais competente do que Biden para lidar com o problema –inclusive pelos próprios imigrantes, como Ana.
Apesar de o republicano acusar os estrangeiros de “envenenar o sangue do país” e prometer fazer deportações em massa se eleito, se ela pudesse votar, a escolhia seria por Trump.
“Sei que sou imigrante, mas os lugares estão superlotados. Isso dificulta muito a vida das pessoas que vêm com um propósito. As pessoas aproveitaram que tem muitos imigrantes para triplicar o valor do aluguel, ainda não consegui vaga para matricular meu filho na escola”, afirma. “Não ter tantos imigrantes vai ajudar a gente que já chegou.”
Ela está longe de ser exceção na comunidade brasileira. Nos dois quilômetros percorridos pela reportagem entre a rua Ferry e a avenida Wilson, quase todos os entrevistados disseram preferir Trump.
A principal insatisfação com Biden é a economia: o custo de vida disparou, e as vagas de trabalho sumiram, afirmam eles, relacionando ambos os problemas à disparada da imigração.
“Todo dia aparecem pelo menos umas cinco pessoas pedindo trabalho. A gente fazia cadastro, mas teve um dia que foram 18, até me assustei. Aí paramos”, diz Dacio Bellani, 56, enquanto vende uma ficha para um cliente trocar por um espetinho preparado na frente do mercado em que trabalha.
Maria Oliveira, 52, afirma que está tentando ajudar um conhecido que acabou de chegar ao país a encontrar emprego, mas está difícil. Há 17 anos nos EUA, ela tem direito a voto. Sua escolha? Donald Trump. “As coisas eram melhores com ele, o país estava andando. Agora está um caos.”
O discurso agressivo contra imigrantes do ex-presidente não é um problema para ela, assim como não é para quase nenhum brasileiro entrevistado pela Folha. A visão é de que o alvo do republicano não são os imigrantes trabalhadores, como eles se veem, mas sim os que chamam de mal-intencionados. A promessa de deportação em massa tampouco os preocupa.
“O Trump governou por quatro anos com esse discurso contra imigrante, não tem como ele cumprir essas promessas sozinho, ele não vai perseguir um a um. Aqui os imigrantes é que fazem o país, então não vão mandar a gente embora. Vão mandar as pessoas que estão dando problema. Essas pessoas, do meu ponto de vista, não merecem ficar”, diz João Furtado de Paiva, 66, dono de uma loja de móveis e residente nos EUA há 22 anos.
Uma brasileira que preferiu falar sob condição de anonimato conta que atravessou a fronteira há seis anos, durante o governo Trump, junto com o filho, à época com 2 anos. Os dois ficaram detidos mais de um mês até serem liberados. Apesar da experiência traumática, ela acredita que isso seja o correto a ser feito porque funcionaria como uma filtragem de quem chega, barrando criminosos. Se pudesse, elegeria Trump.
Crimes atribuídos a imigrantes em situação irregular no país têm sido usados pelo ex-presidente em ataques a Biden. No discurso republicano, uma suposta onda de violência no país –desmentida por estatísticas, que mostram queda da criminalidade– é consequência do aumento do fluxo migratório.
Na última semana, por exemplo, a campanha do republicano usou a notícia da captura de um suspeito de estuprar e matar uma jovem para retomar ataques a Biden no mesmo dia em que o democrata anunciou medidas para facilitar a regularização de imigrantes casados com americanos. O homem, segundo a polícia, é de El Salvador e teria atravessado a fronteira ilegalmente em fevereiro de 2023.
“Enquanto americanos inocentes estão sendo espancados, estuprados e mortos por ilegais de Biden, o corrupto Joe Biden não está tomando ações para parar essa invasão e remover predadores violentos do nosso país”, escreveu Dylan Johnson, diretor-adjunto de comunicação da campanha de Trump.
Pesquisas mostram, porém, que imigrantes têm 60% menos chances de estarem na prisão do que a população americana, e sua taxa de encarceramento vem caindo desde 1960.
Ainda assim, a ideia de que os dois fatores estariam relacionados vem ganhando espaço na opinião pública americana. O percentual de pessoas que veem imigrantes como mais propensos a cometer crimes violentos praticamente dobrou nos últimos dez anos, alcançando hoje um terço da população, de acordo com pesquisa da Universidade Monmouth.
O mesmo levantamento mostra que neste ano, pela primeira vez, a maioria dos americanos declara apoio à construção de um muro na fronteira com o México.
Domingo Garcia, presidente da Liga dos Cidadãos Latino-Americanos Unidos, a maior e mais antiga organização hispânica dos EUA, compara o discurso republicano sobre imigração à retórica nazista na Alemanha nos anos 1930 contra judeus e ciganos. “É um jogo muito perigoso que estão jogando”, diz o filho de imigrantes mexicanos e ex-deputado democrata no Texas.
Do lado republicano, a percepção é que se trata de questão de patriotismo. “Os últimos quatro anos foram de dor e sofrimento”, afirmou Frank, 29, em frente à Trump Tower, em Nova York, no dia seguinte à condenação do republicano pela Justiça no caso envolvendo pagamentos à atriz pornô Stormy Daniels. Natural da Pensilvânia, um estado-chave no pleito deste ano, ele aponta a imigração ilegal como o maior problema do país.
Esta é a opinião de 48% do eleitorado republicano, segundo pesquisa Gallup –o maior percentual nos últimos dez anos. A visão é compartilhada por um quarto dos independentes, fatia também recorde entre um grupo cujo apoio é crucial em uma eleição apertada. Entre democratas, apenas 8% têm esse ponto de vista.
Assim, a campanha de Biden tenta se equilibrar para mostrar uma postura mais dura do presidente, mas sem alienar sua base. Nas últimas semanas, a Casa Branca anunciou uma medida que, na prática, fecha a fronteira e, pouco depois, outra que facilita a regularização de imigrantes casados com americanos.
“A primeira coisa que Joe Biden fez como presidente, em janeiro de 2021, foi introduzir uma reforma abrangente da imigração. Ele ainda está pedindo que isso aconteça”, diz à Folha Maca Casado, diretora da campanha do democrata para mídia hispânica, em referência ao fato de o Congresso ter rechaçado o projeto. Uma nova tentativa foi feita há alguns meses e derrubada novamente pela oposição republicana —instada por Trump.
Folha estreia série sobre eleição americana
Quatro anos depois, Joe Biden e Donald Trump voltam a se enfrentar nas urnas em novembro, numa disputa que deve ser novamente acirrada. Os grandes temas que mobilizam o eleitorado dos Estados Unidos serão abordados pela correspondente Fernanda Perrin pelos próximos meses, até outubro. Imigração, economia e aborto estarão entre os assuntos presentes nas reportagens da série Biden x Trump.