Recentemente, o Voxel entrevistou os criadores do EcoLauncher, projeto que prometia ser uma espécie de Steam da Pirataria. Para quem acompanhou o caso mais de perto, provavelmente ficou sabendo sobre seu fim: encerrado, ainda em versão beta. Segundo os próprios desenvolvedores, a empreitada recebeu muito mais atenção do que o esperado na ocasião — e, assim, precisou ter suas atividades interrompidas até segunda ordem.
Nesse contexto, porém, um dos maiores lemas da cultura popular segue bastante vivo: ideias não morrem — ainda mais aquelas que pensam em uma causa maior. Seguindo este pensamento, um grupo de desenvolvedores intitulado “Los Broxas” decidiu continuar o legado deixado pela EcoLauncher, resolvendo suas falhas.
Desta vez, o novo launcher funciona independente de um servidor, sendo descentralizado e de código aberto, o tornando praticamente “inderrotável”. Apropriadamente, o grupo de desenvolvedores designou o nome Hydra para o projeto, referenciando o monstro mitológico que duplica seu número de cabeças, sempre que uma é cortada.
Hydra será a nova Steam da Pirataria? (Fonte: Adriano Camacho, Voxel)
A convite da equipe Los Broxas, o Voxel realizou uma entrevista exclusiva com todos os detalhes sobre a nova Steam da Pirataria e o que os usuários podem esperar dela! Confira abaixo, na íntegra:
Hydra é a nova Steam Verde?
Antes de mais nada, vamos contextualizar os detalhes para quem ficou perdido: “Steam Verde”, como termo popular, trata-se de uma piada relacionada ao uTorrent. O cliente de torrent possui, justamente, um ícone esverdeado bastante conhecido e, por este motivo, logo foi associado à pirataria. Conforme a Steam representa a maior loja de jogos no PC, sua versão “grátis” não poderia receber outro apelido.
Eventualmente, entretanto, um site foi criado com o mesmo termo. Funcionando como um blog, o domínio essencialmente traz jogos “livres” para o público, mas conta com a presença de anúncios e leva consigo a estética “clássica” de espaços digitais como este. Por essa característica, sua proposta se popularizou entre os usuários com maior experiência, mas afastou novatos.
Logos da Steam Verde e uTorrent, lado a lado. (Fonte: Adriano Camacho, Voxel)
De maneira independente, outro grupo iniciou um projeto também utilizando o nome esverdeado nas redes sociais. Lá, não demorou para que a conta original fosse derrubada, dando origem à Ecológica Verde — os fundadores do EcoLauncher. Agora, com o esclarecimento, já adiantamos que o Hydra não possui qualquer relação com o site Steam Verde ou à quase-homônima página sustentável do Twitter.
Na prática, a equipe do EcoLauncher apenas reconhece a importância do projeto Hydra para a comunidade e, por compartilhar os mesmos ideais, apoiou seu desenvolvimento. Estabeleceu-se, assim, uma parceria de divulgação — Los Broxas trouxeram a faísca; Ecológica Verde o combustível.
Hydra, a verdadeira Steam da Pirataria
Após uma boa contextualização da história da internet moderna, vamos finalmente falar do Hydra, a verdadeira Steam da Pirataria. Começando pela sua origem, que também explica a queda do EcoLauncher, perguntamos aos desenvolvedores sobre a motivação para o início do projeto. Para eles, é uma questão de princípios: “acreditamos fortemente que todas as pessoas deveriam ter acesso aos jogos, independente do seu grau de familiaridade com a pirataria”.
A colocação, apesar de seu peso, é bem-intencionada. Não entraremos nos detalhes específicos sobre a legalidade do projeto no Brasil, algo já explorado na reportagem sobre a EcoLauncher, mas é importante diferenciar a missão destes projetos e os objetivos perseguidos pelos crackers de jogos.
Resumidamente, os grupos brasileiros apenas facilitam a conexão direta entre o usuário leigo e o produto final, os “jogos desbloqueados” — evitando vírus, ransomware e outros problemas. Na prática, nem os Los Broxas e nem a Ecológica Verde são responsáveis por quebrar as patentes de seguranças nos títulos distribuídos.
Símbolo do Launcher Hydra. (Fonte: Adriano Camacho, Voxel)
Anteriormente, a experiência de obter um jogo pirata exigia que usuários navegassem em sites repletos de perigos, propagandas com conteúdo adulto e inúmeras travas monetizadas. Os desenvolvedores comentam o cenário: “muitos recursos no download de jogos [piratas] na internet são confusos, questionáveis e tendem a forçar que o usuário assista múltiplos anúncios até chegar em seu objetivo”.
Pensando nestes problemas e na atmosfera “de submundo ilegal” pertencente ao jeito “clássico” de baixar jogos piratas, a equipe de desenvolvedores planejou o Hydra para ser uma experiência completa longe desses problemas — e definitiva.
Mas afinal, o que é o Hydra? É seguro usar?
Nas palavras dos desenvolvedores: “Hydra é um launcher de jogos gratuitos com foco na segurança e na autossuficiência. Ele é livre de anúncios, não exige cadastro, assinaturas ou fila de espera,” explicam. Além disso, eles explicam que a solução não exige uma conexão a servidores externos para a consulta dos jogos ou de atualizações, assim, nenhuma informação do usuário é compartilhada na internet.
Essas características tornam o Hydra bem diferente do EcoLauncher, tanto em proposta, quanto em funcionalidade. Para alcançar o feito, a equipe desenvolveu uma solução para indexar todas as informações necessárias no computador do usuário, criando assim uma base de dados local e offline. Assim como no caso da Ecológica Verde, as fontes provedoras dos jogos são conhecidas e verificadas pela comunidade, sendo livre de vírus e programas maliciosos escondidos.
Além disso, conforme explica o time de desenvolvedores, o Hydra é muito mais do que apenas um inicializador de jogos ou um gerenciador de download. Na realidade, a plataforma propõe uma experiência completa ao usuário: é possível pesquisar títulos, escolher a fonte desejada para baixá-los, realizar a instalação e, por fim, jogá-lo.
Atualmente, também há recursos extras no Hydra, como um botão “Surpreenda-me” e uma integração com o site How Long To Beat, que oferece estatísticas de conclusão para diversos jogos. Já pensando em expansões, a equipe está desenvolvendo um sistema de conquistas para a plataforma, a tornando ainda mais completa.
Com tamanha gama de recursos, pressuposta segurança e autonomia, não é surpresa que o Hydra tenha sido consagrado como “A Steam da Pirataria” por parte da comunidade. As vantagens oferecidas gratuitamente pela plataforma, porém, inevitavelmente levantam questões acerca da pirataria — além do que poderia acontecer com o projeto, seus desenvolvedores ou usuários, caso as autoridades tomassem conhecimento de sua existência.
Ao Voxel, a equipe Los Broxas confirmou que não está preocupada, na verdade.
Launcher Hydra é pirataria?
Conforme mencionamos anteriormente, a reportagem sobre o EcoLauncher explorou em mais detalhes a Lei dos Direitos Autorais, que define o crime de pirataria no Brasil — leia clicando aqui! Recapitulando em um breve resumo, o texto descreve apenas a ilegalidade em distribuir, replicar ou violar patentes registradas, com a finalidade direta ou a indireta de lucro.
Neste caso, é possível ilustrar um exemplo com os hackers que quebram as proteções presentes nos jogos e, após isso, realizam sua distribuição por meios monetizados. Outra alternativa seria pela réplica, isto é, utilizar arquivos de um título em outro projeto com finalidade comercial.
Notavelmente, a Lei dos Direitos Autorais é bastante obsoleta e já não estava preparada para combater a pirataria ainda em sua “estreia”, em 1998. Portanto, seu texto não prevê a penalização específica de casos como o do Hydra, embora o download de conteúdos piratas ainda seja considerado crime, independente de sua origem.
De todo modo, a equipe Los Broxas não está preocupado com a legalidade de seu projeto — e nem mesmo com sua repercussão. Segundo eles, o Hydra nada mais é do que um indexador, que salva links em uma biblioteca offline no computador do usuário: “não temos um servidor próprio, não crackeamos e não hospedamos nenhum jogo”.
Embora facilite acesso aos jogos piratas, o Hydra não hospeda jogos e depende da comunidade estrangeira(Fonte: Adriano Camacho, Voxel)
Os desenvolvedores ainda deixam claro que não há finalidade financeira na plataforma: “todas as pessoas que se envolveram e trabalham ativamente no Hydra estão no projeto por um único motivo: a democratização dos jogos,” explicam. Para eles, a questão da pirataria vai além da preocupação com os preços abusivos, mas se estende à segurança e acessibilidade do usuário frente às ameaças digitais presentes nos sites de distribuição ilegal.
Nesse viés, ainda é possível argumentar que o trabalho dos desenvolvedores combate à monetização predatória tipicamente presente em sites de pirataria. Como os downloads são feitos através de torrents, não há meios para quantificá-los ou monetizá-los — diferente dos links ilegais “clássicos”, que possuem propagandas e favorecem seus donos.
O Hydra vai cair como o EcoLauncher?
Diferente do caso do EcoLauncher, desativado por precaução pelos próprios desenvolvedores, o Hydra não teme sua crescente popularidade. Nas palavras dos próprios desenvolvedores, a plataforma não pode ser derrubada de maneira permanente — seja por empresas ou por autoridades. Para começar, o projeto possui código aberto e está disponível para a contribuição internacional da comunidade, contando com mais de 42 ramificações atuais.
Dessa maneira, ainda que o projeto seja barrado no Brasil, seu desenvolvimento inevitavelmente continuará em outros países. A repercussão do Hydra, inclusive, inspirou usuários estrangeiros a criar traduções para a plataforma — que já possui suporte para português, inglês, francês e espanhol.
EcoLauncher foi desativado indeterminadamente. (Fonte: Adriano Camacho, Voxel)
E ainda que ocorra um drástico combate à distribuição e desenvolvimento do Hydra, ao improvável nível multicontinental, cada usuário que possua a plataforma em sua máquina ainda poderia realizar sua manutenção de maneira individual. Isso, justamente, por possuir acesso ao código-fonte aberto do software.
Independentemente da legalidade, é um feito um tanto quanto impressionante e faz perfeito jus ao nome Hydra. Porém, antes de comemorar a “conquista dos brasileiros”, vale refletir sobre as motivações para o seu desenvolvimento.
O Brasil e a Pirataria, em números
Segundo dados levantados pelo estudo Brasil Ilegal em Números, publicado neste mês, o país teve prejuízo de R$ 453,5 bilhões em 2022, em razão de práticas ilegais de comércio — incluindo mercadorias transacionadas ilegalmente, tributos não arrecadados e furtos de água e luz.
Os números impressionam, mas são reflexos de problemas muito maiores e mais relevantes, como o número de famílias em dívida ativa no Brasil — 77,9% em fevereiro deste ano, segundo a Agência Nacional. Dados do Serasa ainda apontam que, entre as famílias inadimplentes, 29,3% das dívidas são relacionadas aos bancos e aos cartões de crédito, enquanto 23,09% delas são referentes a contas básicas como água, luz e gás.
Segmentos de Inadimplentes no Brasil, segundo dados do Serasa. (Fonte: Serasa, Voxel)Fonte: Serasa
Com números dispostos, não é difícil estabelecer uma relação clara: com famílias se endividando por recursos básicos, como justificar a compra de jogos por mais de R$ 300? E mesmo para os consumidores que não são fãs de videogame, o questionamento prevalece em outras áreas do entretenimento, com cinemas e teatros cobrando ingressos mais caros, enquanto os serviços de streaming sobem o preço de suas assinaturas.
O consumo ilegal de mídias no Brasil é um problema, indiscutivelmente, mas também é um sintoma nítido de sua desigualdade. Nesse mesmo contexto, enquanto a acessibilidade à cultura não for uma prioridade para as autoridades, a pirataria continuará sendo a solução para o brasileiro. Sem surpresas, o desenvolvimento do EcoLauncher e do Hydra são exemplos práticos desse efeito.
Pirataria como solução?
E, para piorar o caso, tem-se ainda outro grande problema e desincentivo na indústria de jogos: a quem pertence, na realidade, os títulos comprados legalmente? Esse questionamento aqueceu os debates nas redes sociais contra um antagonista em comum, a Ubisoft, que revogou cópias legítimas de The Crew e removeu o jogo da biblioteca de milhões de jogadores.
A decisão criou um justificado alarde na comunidade internacional de jogadores, que temem um possível novo padrão entre as grandes empresas. Frente ao problema, as lojas que comercializam títulos sem travas (DRMs) como a GOG podem ser a saída mais óbvia, ao menos na legalidade. Para os desenvolvedores do Hydra, sua plataforma aproxima verdadeiramente o usuário de seus jogos: “se as empresas não respeitam nem mesmo seus próprios consumidores, não há outra alternativa se não a pirataria”.
“Se as empresas não respeitam nem mesmo seus próprios consumidores, não há outra alternativa senão a pirataria” — Los Broxas
Longe da questão teórica, há outro problema tão emergente quanto, mas muito mais prático: a preservação dos jogos. Com inúmeros lançamentos digitais todos os anos, muitos títulos antigos ficam “presos” em plataformas digitais ou possuem mídias físicas vendidas a preços exorbitantes, forçando os fãs a utilizarem métodos alternativos. Comumente, a emulação tende a ser a opção mais comum, mas não é a única.
Nesse contexto, a pirataria tende a andar de mãos dadas com os emuladores, mas cumpre um propósito discutivelmente mais nobre aqui. Através da possibilidade de arquivar os jogos em servidores públicos, como o do Internet Archive, os usuários preservam a história dos jogos com mais zelo do que suas próprias publicadoras.
Recentemente, a exemplo disso, pode-se citar o caso da Associação Norte-americana de Softwares Eletrônicos (ESA). A entidade, composta por gigantes da indústria como Sony, Microsoft e Nintendo, se posicionou contra a preservação de jogos — embora tenha se comprometido com a causa, no início dos anos 2000. Segundo ela, não há “medidas suficientemente apoiadas por seus membros” para prover uma espécie de biblioteca digital para títulos antigos, tampouco para mídias físicas.
Jogos antigos correm risco de extinção, caso não sejam preservados. (Fonte: Pexels, Voxel)
Por questões como essa, a entidade internacional Fundação da História dos Videogames afirmou que até 87% dos jogos lançados até 2010 estão em “risco de extinção”, por não terem sido preservados adequadamente. Para piorar, com a já duradoura tendência de títulos dependentes de servidores para funcionar — como o próprio The Crew —, a indústria em breve terá gerações inteiras perdidas. Nesses casos, nem mesmo a preservação poderia ajudar.
Os interessados neste tópico, em especial, podem ler mais sobre nesta matéria exclusiva do Voxel!
Hydra e o futuro da comunidade gamer
Dedicando-se ao projeto, os desenvolvedores Los Broxas estão empenhados em tornar o Launcher Hydra ainda mais leve — atualmente, ele consome pouco menos recursos do que um navegador em segundo plano. Seu trabalho pode ser acompanhado no GitHub oficial.
Enquanto isso, assim como no caso da Ecológica Verde, é importante refletir sobre a iniciativa do Hydra. Embora a prática, direta ou indiretamente, possa contribuir com o prejuízo de pequenos a grandes estúdios, ela é uma mensagem clara à indústria dos jogos e seus frequentes abusos ao consumidor. Entre as “mecânicas surpresas”, passes de batalha, jogos como serviço, preços exorbitantes e revogação de licenças, os jogadores enfrentam inúmeros desincentivos até a compra de um título original.
Até o consumidor ter maior acesso à cultura e aos jogos, resta torcer para que mensagens e protestos como estes sejam ouvidos pelas autoridades e grandes empresas. Do contrário, a Steam deixará provavelmente de ser a loja de jogos mais popular no PC — e com boa folga.
Todas as fontes utilizadas na reportagem podem ser encontradas logo abaixo.