Diversas cidades do Brasil, de capitais a pequenos municípios, têm incrementado a segurança pública com um novo olhar sobre um equipamento tradicional. O resultado é o que conhecemos como “muralha digital” ou “muralha eletrônica”.
Este é um sistema que integra recursos de vigilância, como câmeras instaladas em vários pontos da cidade, inteligência artificial (IA) e uma equipe de monitoramento em tempo real. Ele é usado para prevenir ou combater a criminalidade, ajudando a rastrear suspeitos em caso de roubo, furtos, placas clonadas, acidentes graves de trânsito e outros incidentes.
As muralhas digitais também podem ajudar a encontrar foragidos, fugitivos e pessoas com pendências com a Justiça.
A tecnologia empregada, porém, vai além do acompanhamento por vídeo — e os olhos atentos desses sistemas trazem preocupações já em debate por especialistas de setores como Direitos Humanos e cibersegurança.
Do que é feita a muralha digital?
A implementação de uma muralha digital varia de acordo com a cidade, o projeto e até o orçamento, mas pode incluir os seguintes elementos:
- Câmeras de monitoramento;
- Centro de operações ou equipe especializada da Secretaria de Segurança Pública;
- Alerta que cruza informações de bases de dados e outros materiais;
- Compartilhamento de informações entre forças de segurança;
As câmeras fazem a leitura de placas de veículos ou o reconhecimento facial. Elas são posicionadas em locais como entradas da cidade, vias públicas, parques ou praças, escolas e pontos turísticos, além de eventuais câmeras de viaturas e do uniforme.
A central de operações em Curitiba. (Imagem: Rodrigo Felix Leal/Agência Estadual de Notícias)Fonte: Rodrigo Felix Leal/Agência Estadual de Notícias
Além disso, é possível fazer mais rapidamente consulta sobre pessoas desaparecidas, óbitos, veículos roubados e por procurados da Justiça, já comparando o resultado coletado em vídeo.
Fora a comparação com bases de dados de criminosos ou carros irregulares, esse tipo de serviço tem funções extras: em Curitiba, por exemplo, a Defesa Civil usa imagens para prestar socorro em casos como alagamento. Além disso, as gravações de vídeo podem servir ainda como evidência em investigações criminais.
Os projetos também podem integração o setor privado para monitoramento em grandes eventos — um jogo de futebol no começo deste ano resultou na prisão de um homem foragido há quatro anos por tráfico de drogas, identificado pela biometria do estádio.
Em algumas cidades, as muralhas contam com a ajuda da IA para “detecção automática de atividades suspeitas” e “reconhecer padrões e comportamentos incomuns“. Se o sistema for estadual, os centros de operação municipais podem ser integrados para facilitar o rastreio.
Alguns resultados da muralha
De acordo com dados oficiais do estado de São Paulo, onde a chamada Muralha Paulista foi oficializada em setembro de 2024 após meses em fase de testes, o projeto em suas diferentes implementações ajudou a recuperar 107 carros roubados só no primeiro semestre de 2024 na região do Grande ABC, sendo que o volume de roubos também caiu.
No ano passado, foram 19,3 mil detidos em todo o estado com o auxílio da tecnologia em diferentes casos. Ao todo, já são 10 mil câmeras inteligentes em uso em São Paulo, inclusive em cidades da região metropolitana.
Araras, no interior de SP, já tem 179 câmeras instaladas. (Imagem: Prefeitura de Araras/Divulgação)Fonte: Prefeitura de Araras
Os argumentos principais das secretarias para implementar as muralhas digitais envolvem não só a precisão nas operações, mas também redução no tempo de resposta a alertas e redução nos custos com agentes, viaturas e logística.
“A tecnologia nos ajuda muito no dia a dia, pois permite alcançar informações que presencialmente os agentes de segurança não conseguem ter acesso, como o mapeamento dos lugares com os maiores índices de criminalidade”, explicou à agência estadual de notícias o secretário da Segurança Pública do Paraná, Romulo Soares.
Tranquilidade ou sensação de vigilância?
Especialistas ouvidos pelo TecMundo concordam que projetos como a Muralha Paulista são contraponto às propostas tradicionais de segurança pública. Ao mesmo tempo, entretanto, eles também geram “uma sensação normalização da hipervigilância“.
Para Lucas Lago, membro do Instituto Aaron Swartz, instituição que dentre outras coisas promove e debate o uso de tecnologias que respeitam a autonomia individual e coletiva, há problemas do ponto de vista de direitos humanos que devem ser observados e discutidos. “Os projetos batizados de ‘muralhas digitais’ normalmente são construídos em um tripé de vigilância massiva, uso de inteligência artificial e centralização dos dados“, explica.
É o que explica Rafael Zanatta, codiretor da Data Privacy Brasil, defendendo que é preciso olhar além dos equipamentos na formulação da estratégia de segurança. “É importante pensarmos que o tecnosolucionismo é sempre uma armadilha. As tecnologias não resolverão problemas sociais”, argumenta.
Citando especificamente o decreto de criação do Muralha Paulista, Zanatta nota que há lacunas nas explicações e garantias sobre temas como proteção de dados pessoais, sem muitas garantias de anonimização de dados e redução de riscos.
Outra questão controversa está no uso de dados do cidadão por empresas parceiras, algumas estrangeiras, que podem treinar modelos de linguagem com base nessas informações. “Não há nenhuma contrapartida social para a população que está produzindo esses dados. Pelo contrário: é o contribuinte que está pagando para que esses softwares sejam acoplados”, detalha Zanatta.
Em termos de cibersegurança, ambos citam ainda como risco a concentração informacional, já que a arquitetura desses sistemas reduz o acesso às informações a poucos responsáveis. Para Lago, isso traz eficiência no processo, mas torna inevitável o aumento do autoritarismo.
Por fim, a IA desses sistemas gera preocupações por possíveis discriminações. “Há casos em que pessoas carregando instrumentos musicais foram confundidas e classificadas como pessoas carregando armas por sistemas de IA.
É preciso, portanto, um cuidado muito grande com a auditoria dos sistemas de IA e um controle social sobre suas capacidades“, sugere o codiretor da Data Privacy Brasil.
Reconhecimento facial ajuda, mas carrega seus próprios problemas. (Imagem: Getty Images)Fonte: GettyImages
Esse é também um ponto citado por Lago, baseando-se em casos e estudos que já comprovaram que o viés algorítmico existe em IAs. “É sabido que inteligências artificiais são tecnologias com grande taxa de falha mesmo em tarefas de classificação simples e, em especial, são enviesadas no tratamento de pessoas negras”, relembra.
Com as muralhas digitais já erguidas em várias cidades, o trabalho de grupo ativistas e de proteção de privacidade tem sido explicar que criticar esse tipo de projeto não é ser conivente com a criminalidade, mas contra a hipervigilância.
Conscientização, acionamento de entidades civis ou órgãos de defesa quando necessário e abrir espaço para questionamentos da população são vistos como possíveis caminhos de resposta a esses sistemas.