Um dia após a divulgação de comunicado conjunto sino-brasileiro em defesa de negociações de paz com participação de Rússia e Ucrânia, o assessor especial da Presidência, Celso Amorim, disse durante entrevista a jornalistas brasileiros em Pequim que “há uma mudança” no governo russo, e que o presidente Vladimir Putin tem “falado mais de diálogo”.
Amorim se referia a declarações feitas por Putin uma semana antes, também em Pequim. “Estamos abertos a um diálogo com a Ucrânia“, falou o líder russo à agência Xinhua, antes da cúpula com o chinês Xi Jinping. Por outro lado, ele afirmou nesta sexta-feira (24) que o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, não tem mais legitimidade para negociar.
“Claro que você pode dizer que ele fala uma coisa e faz outra”, acrescentou Amorim, reconhecendo também ter dúvidas e mencionando o anúncio por Putin de novos exercícios nucleares —ainda que seja uma “história relativa, porque exercício eles fazem permanentemente, os dois lados fazem”.
Também um dia depois do comunicado conjunto entre China e Brasil, a agência de notícias Reuters relatou ter ouvido, de autoridades do entorno de Putin, que ele quer um cessar-fogo na Ucrânia, respeitando a linha de frente atual. O líder russo estaria pronto para “congelar a guerra”.
Amorim, que esteve na Rússia há um mês, faz relato semelhante: “Ouvi de um dos meus interlocutores russos uma frase significativa e que pode exprimir a verdade: que eles querem que haja uma neutralização. Querem ter a certeza de que haverá uma zona tampão com tamanho suficiente para que não haja armas que atinjam diretamente Moscou“.
O assessor de Lula avalia que o momento russo é favorável à mudança. “Putin entrou em novo mandato, trocou o ministro da Defesa e trocou aquele que era considerado mais influente sobre ele, [o ex-secretário do Conselho de Segurança, Nikolai] Patrushev. Pode ser um período que dê margem a uma trégua.”
Seria uma trégua acompanhada de “algumas condições, alguma garantia de segurança” a Moscou, implícita na ideia de zona tampão. “Também ninguém fala aqui na nota [sino-brasileira] de um tratado de paz, uma coisa definitiva. Isso vai ter que ser continuado.”
Para Amorim, de extensa carreira no Itamaraty e que já foi chanceler e ministro da Defesa, “o fato é que, depois do desmembramento da União Soviética, os cuidados deles são sobretudo da segurança da Rússia, do que sobrou”.
Já foi assim, lembra ele, durante o conflito na Geórgia, em 2008. “A questão de entrar para a Otan é o que, para eles, toca”, disse. “Eles se incomodaram com a Geórgia naquela época, mas a Ucrânia é um ponto muito sensível. Entra em outras razões, nas quais não vou me estender, porque parece que estou justificando e não estou.”
Questionado sobre como seria, na prática, a negociação de paz que o Brasil e a China pretendem encaminhar, ele responde: “Bom, esse é outro passo. O primeiro é aceitar uma solução que envolva Rússia e Ucrânia. Vamos aguardar a repercussão que isso vai ter”.
Se a recepção for boa, “aí você pode sugerir hipóteses, uma negociação de paz definitiva, um armistício”. Ele lembra que “tem situações até hoje cinzentas, por exemplo, a República do Chipre do Norte só é reconhecida pela Turquia, mas está assim há 60 anos. Se você passa 60 anos com a situação não resolvida, mas as pessoas param de se matar, é melhor”.
Também defende esperar o que vai acontecer na reunião na Suíça, no mês que vem, do grupo de países que apoiam a Ucrânia, sem convite à Rússia. “Na minha opinião, é destinada ao fracasso, e aí então, depois, a gente pode chamar” uma conferência que inclua tanto Ucrânia quanto Rússia.
Amorim acredita que já existem indícios de uma mudança em relação ao conflito, sobretudo entre europeus que visitou recentemente, casos de França e Alemanha, também há um mês. “Todos estavam assim, ‘vamos apoiar a Ucrânia até o fim, mas, se vocês quiserem tentar isso ou aquilo, vamos ouvir’. Essa é a esperança. Senti desejo de alguns países de que haja uma negociação.”
O assessor especial adianta uma questão que deve ganhar corpo se avançar essa negociação com Rússia e Ucrânia. “Você quer 30, o outro oferece 10, aí ficam em 18, é assim que se negocia. Como fazer isso e, ao mesmo tempo, respeitar a Carta da ONU? É um desafio intelectual.”
Segundo ele, “a ONU tem vários princípios e, na prática, esses princípios são às vezes contraditórios entre si”. No Kosovo, por exemplo, “o que predominou no movimento ocidental foi a autodeterminação dos povos”, ou seja, uma maioria querendo deixar a Sérvia. “E agora quem usa a autodeterminação dos povos são os russos. Diz que os caras não querem ficar [como parte da Ucrânia], são meio russos. Então, são princípios, mas adaptáveis.”
Amorim disse também ter ouvido, no Ocidente, que “é preciso convencer a China e que só o Brasil para convencer a China”. Foi um dos estímulos à retomada do tema com Wang Yi, membro da cúpula do Partido Comunista e chanceler chinês.
Outra motivação teria sido a viagem de Xi à Europa, há duas semanas. “Ele claramente propôs uma conferência que tivesse a Rússia. Achei que era uma oportunidade de tentar alguma coisa, ter uma posição comum. Nós tivemos um contato, mandaram lá os papéis deles, fizemos os comentários e chegamos a esta conclusão. A viagem é especificamente para tratar de Ucrânia.”
A reunião de três horas com Wang Yi na quinta (23) foi na chamada Casa de Hóspedes Diaoyutai, na realidade um parque fechado, no centro de Pequim. O mesmo em que se reuniram o primeiro-ministro Zhou Enlai e o conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Henry Kissinger, em 1971, dando início ao processo de normalização das relações entre os países.
Questionado sobre os obstáculos que a eleição americana pode trazer às negociações para parar a guerra, Amorim comentou que “faltam Kissingers hoje em dia, falta George Kennan [diplomata americano], um realista que veja o que é possível”.