Os alarmes de ataque aéreo podem tocar a qualquer momento. Na Ucrânia, já faz mais de dois anos que a população se acostumou a receber notificações barulhentas em aplicativos como o Air Alert!, alimentado pelo governo para anunciar quando mísseis russos ameaçam despencar na sua região.
É uma tensão constante que domina todos os dias dos ucranianos desde 24 de fevereiro de 2022, quando começou o que chamam de “guerra em escala total” contra a Rússia —porque o país é unânime em considerar que o conflito, na verdade, está em curso há dez anos, desde a invasão da Crimeia. O clima de exaustão é palpável.
Nas primeiras 24 horas que a reportagem da Folha passou na cidade de Odessa, no sul do país, o alarme geral soou três vezes. O protocolo é seguir para um dos abrigos subterrâneos espalhados pela cidade, em lugares públicos como metrôs ou dentro de prédios, em locais adaptados em garagens, depósitos e sistemas de ventilação.
No primeiro desses alertas, em torno das 19h locais (13h de Brasília), os atendentes do restaurante Dacha entraram em discreta agitação quando a notícia se espalhou entre os clientes —uma sirene era audível num volume bem baixo, só para quem saísse do prédio e prestasse atenção.
O grupo de mídia estrangeira do qual a reportagem faz parte largou os pratos de borscht (sopa de beterraba e carne considerada patrimônio cultural da Ucrânia pela Unesco) e garrafas de Fritz-Cola e se dirigiu à proteção mais próxima, no subsolo gelado de um prédio a meia quadra dali. Mas foram os únicos a fazer isso, já que as famílias locais, muitas com crianças, parecem ter preferido ir para suas casas.
O alarme antiaéreo voltou a soar naquela noite, cerca de 0h30, e no dia seguinte, por volta de 16h30. E isso porque a cidade portuária, responsável pela maior parte da exportação de alimentos da Ucrânia e ponto de escoamento estratégico no mar Negro em funcionamento há meio milênio, está longe do front da guerra, que se concentra no leste do país.
Muito dos resultados positivos para o presidente Volodimir Zelenski pode ser atribuído ao apoio internacional dos Estados Unidos e da União Europeia, que forneceram armas e dinheiro a Kiev, temerosos de uma expansão da influência política e militar de Vladimir Putin pela região.
Odessa está longe do epicentro dos ataques, o que não quer dizer não tenha sofrido suas perdas, principalmente devido a bombardeios. Foram mais de cem prédios destruídos desde o começo da guerra, 47 deles também considerados patrimônio cultural —a cidade tem séculos de história como entroncamento de povos de cultura judaica, grega, francesa e russa, por exemplo, que deixaram todos suas marcas na arquitetura e nos costumes locais.
Mas as tragédias mais dolorosas, claro, são humanas. Na periferia da cidade, abriu-se uma nova ala inteira do cemitério local, só para abrigar a escalada de mortos nos últimos dois anos.
Foi lá que a reportagem encontrou Larisa, moradora de Bakhmut, uma das primeiras cidades invadidas pelos russos, que fugiu para Odessa no começo da guerra. Não foi o suficiente para poupá-la, já que ali ela velava o filho Volodimir, recruta que morreu no ano passado em Donetsk, aos 37 anos.
“Não precisamos desta guerra terrível”, afirma. “Nós só queremos paz. Não entendemos por que Putin fez isso, até chamá-lo de animal é injusto, porque animais são mais sensíveis.”
Na mesma manhã de sábado, a família de Iuri Solomko, morto no primeiro mês de guerra, fazia sua visita periódica levando comida e café ao túmulo, como quem quer trazer o morto de volta à mesa.
A irmã e o cunhado de Iuri, Helen e Oleksander, acompanhavam sua mãe em luto. Contam que ele trabalhava com sistemas de aquecimento e se voluntariou no segundo dia de guerra. Morreu poucas semanas depois, vítima de um foguete que atingiu o acampamento de soldados onde repousava.
Eles suspeitam de traição: havia infiltrados pró-Rússia no destacamento, segundo Oleksander, que teriam divulgado a localização dos militares ao inimigo e os tornado alvos fáceis. Vale lembrar que uma fração minoritária dos ucranianos é favorável à anexação pela Rússia, principalmente uma parcela mais velha, saudosa da estabilidade da União Soviética.
O cemitério fica a meia hora de carro do centro de Odessa, uma cidade ainda cosmopolita que, se é menos habitada hoje —estima-se que cerca de 10% da população tenha fugido desde que o conflito se agravou—, ainda vê a vida normal acontecer.
No sábado, na praça que fica entre a Ópera de Odessa e um monumento ao poeta Alexandre Púchkin (1799-1837), havia gente tomando sorvete, namorados em chamego, grupos de adolescentes se filmando em coreografias turbinadas para o TikTok. Um fim de semana comum, não fosse o alarme no fim daquela tarde anunciando o risco de ataque aéreo.
Dentro da ópera, uma apresentação do balé “Dom Quixote” foi interrompida no seu primeiro terço, e o público foi direcionado ao abrigo no piso subterrâneo, onde cabem até 2.000 pessoas, segundo a organização do teatro.
Mulheres mais velhas, apelidadas costumeiramente de “babushkas”, compunham boa parte da plateia de cerca de 300 visitantes; delas se ouviam muitos “tsc” contrariados, reclamando do inconveniente de ter que descer vários lances de escada, muito provavelmente para nada. O alerta vermelho durou cerca de meia hora e, de fato, nenhum bombardeio aconteceu na cidade.
É um sentimento bem expresso por Iefrosinia, aposentada de 77 anos que, apesar de já ter visto foguetes da janela do próprio apartamento, afirma não sair mais de casa para o abrigo em todo episódio de alerta.
“Hoje eu acompanho pela TV e, se tem uma faixa vermelha dizendo que o perigo é urgente, aí eu corro. Mas antes meus filhos puseram um alerta no meu telefone que tocava tão alto que eu tomava um susto. Aí decidi não ver mais.”
O alarme, afinal, é uma precaução para proteger civis, medida plenamente compreensível no papel. No entanto, quando se entra no terceiro ano de uma guerra que não tem horizonte de se resolver, sofrimento e cansaço viram companheiros.