A guerra no Sudão recebeu uma fração da atenção dada aos conflitos em Gaza e na Ucrânia. Mas ela talvez esteja matando muito mais do que eles.
O terceiro maior país da África está em chamas. Sua capital foi arrasada. É possível que 150 mil pessoas tenham sido massacradas, seus cadáveres se acumulando em cemitérios improvisados, visíveis do espaço.
Mais de um quinto da população sudanesa, ou 10 milhões de pessoas, foram forçadas a deixar suas casas. A fome se aproxima e pode ser mais letal do que a da Etiópia na década de 1980: alguns estimam que 2,5 milhões de civis podem morrer até o final do ano.
A mais grave crise humanitária do mundo é também uma bomba-relógio geopolítica. O tamanho e a localização do Sudão fazem dele um motor do caos além de suas fronteiras. A violência local desestabilizará os países vizinhos e provocará fluxos de refugiados para a Europa.
Além disso, a costa sudanesa dá para o mar Vermelho. A implosão do país ameaça o Canal de Suez, uma artéria fundamental do comércio global.
Mesmo assim, países do Oriente Médio e a Rússia não têm sido responsabilizados por seu patrocínio às partes beligerantes, o Ocidente não se envolve nos enfrentamentos, e a ONU está simplesmente paralisada.
As principais partes envolvidas no conflito são o Exército sudanês e uma milícia chamada RSF (Forças de Apoio Rápido, na sigla em inglês). Nenhuma delas tem um perfil ideológico claro ou uma determinada identidade étnica. Ambas são comandadas por senhores da guerra inescrupulosos que disputam o controle do Estado.
O Sudão tem enfrentado guerras civis de forma intermitente desde a sua independência, em 1956. O atual conflito é chocante mesmo se comparada a elas. Cartum, uma cidade outrora movimentada, está em ruínas. Os dois lados bombardeiam civis, recrutam crianças e causam a fome. Evidências corroboram acusações de estupro em massa e genocídio contra a RSF.
Potências externas alimentam os enfrentamentos. Os Emirados Árabes Unidos fornecem projéteis e drones para a RSF. O Irã e o Egito armam o Exército sudanês. A Rússia joga em ambos os lados e enviou mercenários do Grupo Wagner para lutar no local. A Arábia Saudita, a Turquia e o Qatar competem por influência.
Cada um desses atores tem objetivos limitados, que vão de garantir suprimentos de alimentos até obter ouro. Coletivamente, eles estão ajudando a transformar um país em um festival de assassinatos.
Uma análise de dados de satélite e imagens térmicas mostra um país coberto de incêndios. Fazendas e plantações foram queimadas. Os habitantes estão sendo obrigados a comer grama e folhas. Se a escassez de alimentos continuar, de 6 a 10 milhões de pessoas poderão morrer de fome até 2027, prevê um think-tank holandês que monitora a crise.
A África teve uma outra guerra de horror comparável a esta nos últimos 25 anos, no Congo. O que torna o Sudão diferente é o grau com que o caos se espalhará para além de seu território. Ele tem, afinal, fronteiras porosas com sete Estados frágeis, que representam 21% da massa terrestre da África, abrigam 280 milhões de pessoas, e testemunham fluxos de refugiados, armas e mercenários.
Além da África, espera-se um novo choque de refugiados na Europa em um momento em que a migração é uma questão incendiária na França, na Alemanha e em outros lugares. Em Calais, cidade na França ao sul do Canal da Mancha, 60% da população é sudanesa.
O país poderia se tornar um refúgio para terroristas ou fornecer um ponto de apoio para outros regimes interessados em semear a desordem. Rússia e Irã, por exemplo, propuseram armar o Exército sudanês em troca da permissão para estabelecer uma base naval no mar Vermelho.
Além disso, a eventual transformação do Sudão em uma anarquia permanente ou em uma nação hostil ao Ocidente aumentaria os riscos envolvidos na operação do Canal de Suez. Um sétimo do comércio mundial é transportado ali, principalmente entre a Europa e a Ásia. Essas trocas já vêm sendo duramente impactadas em decorrência dos ataques dos rebeldes houthis do Iêmen, forçando os navios de carga a fazer longos e caros desvios de rota pela África.
Apesar de todos esses riscos, o mundo reagiu à guerra normalizando a desordem. Se o Ocidente tentou interromper o genocídio em Darfur nos anos 2000, hoje as autoridades dos EUA dão de ombros, assim como o restante do Ocidente, a China e ONU como um todo.
É um erro grave ignorar o Sudão, porém, mesmo de um ponto de vista puramente egoísta. Quem acha que nada pode ser feito está equivocado. A indignação pública pode pressionar os governos democráticos, que se preocupam com vidas humanas, a fazer mais.
Além disso, vários países têm um incentivo para diminuir a escalada e conter a luta. A Europa está empenhada em limitar o fluxo de migrantes; a Ásia precisa de um Mar Vermelho estável.
Uma abordagem mais construtiva do problema teria duas prioridades. A primeira seria conseguir mais ajuda rapidamente, de modo a reduzir o número de mortes por fome e doenças. A segunda, pressionar os atores externos que alimentam cinicamente o conflito.
Se os grupos envolvidos no conflito tivessem menos armas e menos dinheiro para comprá-las, haveria menos mortes e menos fome induzida pela guerra. Os Estados Unidos, a Europa e outras potências deveriam impor sanções a qualquer empresa ou funcionário público que esteja explorando ou possibilitando a guerra no Sudão —inclusive no caso de aliados como os Emirados Árabes Unidos.
O Sudão não será reconstruído facilmente. Depois de mais de 500 dias de combates impiedosos, os danos levarão décadas para ser reparados. No entanto, é possível salvar milhões de vidas e reduzir a chance de novos terremotos geopolíticos se o mundo agir agora.
Por muito tempo, o Sudão foi a guerra que quase todo mundo preferiu ignorar. É hora de prestar atenção.