A prefeitura de Sultan Yacoub, um vilarejo libanês onde se ouvia português em todos os cantos, está às moscas. Há dez dias, o prefeito emigrou para o Qatar, funcionários brasileiros e de países africanos voltaram para suas casas, e a administração praticamente deixou de funcionar —só abre por algumas horas, às segundas-feiras. Na manhã desta quarta-feira (16), não havia ninguém por lá.
“Quase todo mundo que tinha passaporte brasileiro foi embora”, diz à Folha Ali Jaroush, gerente do posto de gasolina e primo do prefeito. “Meu movimento caiu pela metade.”
Sultan Yacoub, Ghazze e Kamed El Laouz compõem o chamado Cinturão Brasileiro do vale do Beqaa, no leste do Líbano, a poucos quilômetros da fronteira com a Síria. Estima-se que 8.000 brasileiros viviam na região. Com a guerra entre Líbano e Israel, grande parte foi embora. As forças israelenses têm bombardeado sistematicamente diversas cidades do Beqaa, uma área de expressiva presença da milícia xiita Hezbollah, mas vilarejos sunitas e cristãos também têm sido atingidos.
Em Sultan Yacoub, também conhecida como Loussi, o dono do cartório local, Omar Abdul, uma das poucas autoridades que restaram na cidade, estima que entre 300 e 400 brasileiros tenham voltado para o Brasil. Parte deles foi em voos de repatriação da Força Aérea Brasileira. Se as contas estiverem certas, o vilarejo de 2.000 habitantes perdeu cerca de 20% de sua população.
Lá predominam casas grandes de estilo neoclássico, com cercas ou muros, bem diferentes das residências da região. É a prima rica de Ghazze, também parte do Cinturão Brasileiro, mas onde as moradias são bem mais simples.
Mileide Oliveira de Almeida mora com o marido, o libanês Abdo Jalil El Kadri, os três filhos, a sogra, a cunhada, o sobrinho e uma sobrinha em dois andares de uma casa acima de um mercadinho. Eles se inscreveram na lista da Embaixada do Brasil e aguardam serem chamados para voltar nos voos da FAB. “Tenho sete pessoas na família; a R$ 16 mil a passagem aérea, é impossível”, diz El Kadri.
A maioria dos brasileiros que El Kadri conhece já partiu. A família quer recomeçar a vida no bairro onde morava antes de mudar para o Líbano, 16 anos atrás —a Freguesia do Ó, na zona norte de São Paulo. “É melhor deixar para trás nossa casa do que nossa vida”, afirma.
Já em Ghazze, as crianças estão sem aula, porque as duas escolas foram transformadas em abrigo para centenas de libaneses xiitas vindos do sul do país, onde cidades foram esvaziadas. Dois carros foram bombardeados perto da cidade há algumas semanas.
“Minha filha é escoteira e estava levando alimentos para eles [deslocados do sul], mas não a deixo mais ir, tenho medo de bombardearem lá”, diz Mileide, que é muçulmana sunita. Israel tem bombardeado centros de refugiados xiitas, sob o argumento de que há membros do Hezbollah entre os desabrigados.
“Anteontem bateu, e a casa tremeu tanto que caiu o ventilador do teto na cozinha, eu saí correndo”, conta Raya Kadri, 75, que nasceu em Ghazze, mas viveu no Brasil quase a vida toda. “Bateu” é o termo usado pelos brasileiros quando há um bombardeio. Normalmente, os ataques são à noite, e o barulho é muito alto.
Nas últimas duas semanas, os preços explodiram em Ghazze em decorrência da guerra —o pão, que custava 50 mil libras libanesas (R$ 3,16), agora está 77 mil (R$ 4,87). O quilo do frango saltou de 130 mil (R$ 8,22) para 240 mil (R$ 15,18).
Outro casal de líbano-brasileiros, Megida Raul Kadri e Mohammed Kadri, também aguarda ser chamado para repatriação. Com a queda de movimento, Mohammed passou adiante o ponto em que fazia esfihas e manoushes (tipo de pizza libanesa) e está desempregado.
A cerca de 50 quilômetros ao norte de Ghazze, em Baalbek, a situação é crítica. A reportagem passou pela estrada rumo à cidade na tarde desta quarta-feira (16), poucos minutos após um bombardeio aéreo de Israel fechar uma das pistas e atingir vários carros, deixando ao menos dois mortos e nove feridos. Havia muita fumaça, cheiro de queimado e destroços no local.
Baalbek está deserta. Não há ninguém andando nas ruas, e todos os estabelecimentos estão fechados. Muitas lojas e prédios estão destruídos. Com forte presença do Hezbollah, a cidade estampa vários pôsteres do líder Hassan Nasrallah, morto em um ataque de Tel Aviv no fim de setembro. Perto de Baalbek, uma residência foi bombardeada nesta quarta, matando duas pessoas e ferindo outras 11. Na terça (15), ataques aéreos atingiram um dos principais hospitais da região, que fechou as portas.
Um dos moradores de Baalbek, o professor de literatura Walid, que não informou o sobrenome, mudou-se há alguns dias para o hotel Palmyra, bem em frente às ruínas de templos romanos que atraíam milhares de turistas antes da guerra. “Achei que aqui seria mais seguro que minha casa. Estamos diante das ruínas, uma igreja aqui do lado. Mas vai saber…”