Nas fileiras das Forças de Defesa de Israel, uma característica perene do Estado de 75 anos se torna ainda mais evidente na atual guerra contra o grupo terrorista Hamas: a imigração.
Judeus que nasceram em outros países e depois emigraram à nação do Oriente Médio hoje são soldados que refletem no Exército o perfil nada incomum de dupla nacionalidade dos cidadãos locais.
Entre eles, os brasileiros. Moti, 32, de São Paulo, fez em 2010 a aliá —termo que se refere à migração de judeus a Israel, num processo que a comunidade judaica chama de retorno à sua terra de origem. No país, prestou o serviço militar obrigatório e entrou para os reservistas. Até que foi convocado, como outros 300 mil, no último 7 de outubro.
“Ninguém pensou em voltar ao Brasil para se esconder ou para fugir de uma situação tão difícil”, diz o paulista, cujo sobrenome não foi compartilhado a pedido do Exército por segurança. “Todos têm plena convicção na ideia de que estamos lutando pela nossa casa.”
O brasileiro-israelense que vive no país com a esposa e os filhos atua na unidade da Defesa que, segundo sua própria descrição, trabalhou na expulsão de membros do Hamas do território israelense e recolheu corpos de vítimas dos terroristas nos kibutzim, comunidades ao sul.
“Mesmo nos treinando durante tantos anos, nada nos preparou para ver tamanha atrocidade”, diz ele. “Lembramos os números de mortos de 1948 [1ª guerra árabe-israelense], 1967 [Guerra dos Seis Dias] e 1973 [Guerra do Yom Kippur], mas eram principalmente soldados. Agora, eram civis inocentes que estavam nas suas casas.”
“Durante todos os dias na fé judaica a gente lembra da terra de Israel”, diz Moti ao relembrar sua ascendência. “Minha família foi expulsa da Judeia [forma como Israel se refere à atual Cisjordânia] e, então, foi para a Península Ibérica, de onde também foi expulsa pela inquisição. De lá, foram para a antiga Iugoslávia, onde os meus bisavós foram assassinados na Segunda Guerra Mundial.”
Como Moti, a brasileira-israelense Ruth, 42, também compõe o perfil de dupla nacionalidade que forma as fileiras do Exército local, mas há muito mais tempo: a mineira está nas Forças de Defesa há mais de duas décadas, desde que ingressou no serviço militar obrigatório.
Ruth emigrou aos 13 anos a Israel com a mãe. A hoje sargento comanda um laboratório de controle de qualidade de produtos usados, por exemplo, em aviões do Exército e em especial no Iron Dome (redoma de ferro), o principal sistema antimísseis de Israel.
“Não sou uma soldado de combate, mas o que meus soldados fazem garante que os aviões funcionem”, diz ela. “Toda vez que assino a liberação de um produto, sinto o peso dessa responsabilidade.”
“O Iron Dome, no final das contas, protege também a minha casa. Se eu fizer alguma coisa errada e ele não funcionar, significa que também a minha mãe, como os demais civis, não vai estar protegida.”
Para Ruth, a segunda guerra entre Israel e Líbano, em 2006, também foi extremamente impactante no dia a dia. Mas nada comparado ao atual conflito. “Tenho mais ou menos 15 soldados abaixo de mim, e também tenho de estar forte e dar a eles um lugar para se abrir. Muitos são novos imigrantes, estão aqui há dois anos”, diz a sargento, que desenvolve um projeto para ajudar imigrantes a aprenderem hebraico.
“As imagens que tenho da Polônia, quando visitei o campo de concentração de Auschwitz com o Exército, e as que tenho do sábado negro [maneira como se refere aos ataques do Hamas em 7 de outubro] são muito parecidas”, diz ela, que quando esteve no mais conhecido campo de concentração da história encontrou o nome de vários de seus antepassados em uma lista de judeus ali mortos por nazistas.
“O objetivo é o mesmo: desmanchar Israel. Se tem uma coisa que o Holocausto nos ensinou é que o povo precisa de Israel. A luta é pela casa, não é mais uma discussão política sobre um pedaço de terra para eles, outro para nós”, diz à reportagem.
Por motivos também ligados à segurança, as Forças de Defesa de Israel se negam a fornecer dados sobre soldados com dupla cidadania. Mas observar o perfil demográfico geral do país ajuda a ilustrar o peso da migração: calcula-se que, em 2020, quase 21% da população local (1,8 milhão à época) tivessem vindo do exterior, sendo a maioria (mais de 40%) de ex-repúblicas soviéticas.
Dados mais atualizados são difíceis de obter. O centro oficial de estatísticas de Israel está inacessível. Em sua página oficial, o aviso: devido à situação atual de segurança (a guerra Hamas-Israel), o site estará bloqueado temporariamente para usuários do exterior.
Com apoio da Agência Judaica, órgão patrocinado pelo governo em Tel Aviv, mais de 76 mil judeus de todo o mundo fizeram a aliá apenas em 2022 —estão entre eles judeus ou filhos e netos de judeus que têm a migração facilitada pela chamada Lei do Retorno. O Brasil foi a segunda principal origem na América Latina, com 405 judeus que fizeram a migração, atrás da Argentina (1.059).
São pessoas majoritariamente na faixa etária de 20 anos que, como Moti, emigram ainda na idade de ingressar no serviço militar obrigatório. “Essa guerra, essa luta, é para destruir o Hamas e os terroristas para que eles nunca mais possam ferir ou amedrontar, causar qualquer mal contra a população israelense —os judeus e os árabes”, diz ele. “Não é uma luta contra o povo palestino.”
A reportagem perguntou ao soldado se há um dilema moral relacionado às mortes de civis documentadas em Gaza. A pedido da comunicação do Exército, ele não respondeu, sob o argumento de que o soldado representa a corporação, não apenas a si próprio.
“Gostaríamos de viver em paz e harmonia com qualquer um que quiser morar aqui”, afirma Moti.