“Eles me forçaram a sair de Guantánamo do mesmo jeito que me levaram para lá”, diz à Folha Mansoor Adayfi. “Vendado, encapuzado e algemado, fui jogado na Sérvia.”
Nascido em um pequeno vilarejo nas montanhas do Iêmen, ele foi capturado pelos Estados Unidos em 2002 no Afeganistão, quando tinha 18 anos, e transferido para a base militar em Cuba pouco depois. Ficou 14 anos preso sem nunca ter sido acusado de nenhum crime. Em 2016, foi transferido para Belgrado, onde vive até hoje.
É noite quando ele atende minha videochamada. Mansoor veste uma camiseta laranja, no mesmo tom dos uniformes usados pelos detentos da prisão nas fotos que correram o mundo, com a frase “feche Guantánamo” em inglês.
Com um sorriso, uma energia e uma informalidade que eu não estava esperando, a primeira coisa que ele faz é cantar. Mansoor explica em seguida tratar-se da saudação em árabe “que a paz de Alá esteja com você, e Sua misericórdia e Suas bênçãos”.
Não é fácil falar com um ex-detento de Guantánamo. Advogados a quem pedi ajuda me disseram que seus ex-clientes que foram soltos preferem levar vidas discretas —”sinceramente, chatas”, definiu um deles. Mansoor é uma das exceções à regra e assumiu uma espécie de papel de porta-voz.
“No começo, as entrevistas eram um pouco difíceis. Relembrar as memórias, revisitar o trauma de novo e de novo não é fácil. Mas agora eu tenho feito isso há anos, acho que é o meu dever. Guantánamo ainda é uma das prisões mais secretas do mundo, e é nossa tarefa levar a verdade às pessoas”, diz.
Desde que foi solto, publicou um livro, “Don’t Forget Us Here” (não nos esqueçam aqui), sobre sua vida na prisão; um segundo está em produção. Gravou um podcast veiculado pela BBC. Recebeu uma bolsa do Instituto Sundance para desenvolver um projeto audiovisual. Em paralelo, ele trabalha como coordenador do projeto Guantánamo na ONG Cage, criada em 2003 em defesa de prisioneiros no contexto da Guerra ao Terror.
Mansoor formou-se em administração, e sua tese tratou da reintegração de ex-detentos. Com base nela, afirma, foi criado um fundo para ajudá-los. Ele admite, no entanto, ser difícil levantar doações. Entre 20 e 30 homens foram beneficiados, afirma, mas com pouco, algo como US$ 2.000 cada um.
Ele me pede para pensar em alguém que tenha passado 20 anos em Guantánamo. “Ele sai, sua família se foi, sua casa se foi. Ele não tem comida, não tem dinheiro para comprar roupas ou remédios. Não há nada. Muitos têm problemas de saúde por causa da tortura e dos abusos“, descreve. “Te jogam na rua como lixo sem nenhum apoio.”
Ele próprio afirma ter sofrido vários abusos, como surras, eletrochoques e uma simulação de execução. “Eles me encapuzaram, eu ouvia cachorros latindo alto ao meu redor e pessoas gritando em inglês ‘não resista’. Cortaram as minhas roupas e me arrastaram para um caminhão, e depois para um helicóptero”, diz sobre sua captura.
Ele afirma que foi denunciado falsamente como um membro da Al Qaeda por alguém interessado na recompensa oferecida pelos EUA. Mansoor, porém, nega qualquer vínculo com o terrorismo e diz que trabalhava no Afeganistão como assistente de pesquisa.
“Não tinha nem eletricidade. Quando o 11 de Setembro aconteceu, eu nem fiquei sabendo, porque não tinha conexão com o mundo exterior. Meu ponto de contato era uma organização de caridade saudita. Depois de três dias, eles disseram que tinha acontecido um ataque nos EUA e que deveríamos ir embora, porque eles iriam ao Afeganistão”, diz.
Ele passou seus primeiros anos em Guantánamo em isolamento. Sua única boa lembrança desse período é uma iguana, abundante na região, a quem apelidou de “princesa”. Quando ia ao pátio, conversava com ela e às vezes lhe dava comida, afirma.
De resto, ele rememora o período como uma experiência de “dor, medo e ódio”. “Você não consegue dormir, você fica desorientado. É muita coisa para aguentar, especialmente nessa idade quando tudo acontece tão rápido. Seu cérebro, sua mente não consegue processar tudo. Você pergunta: por que estão fazendo isso?”
“Há um momento em que você chora por dentro, e isso é pior do que simplesmente chorar, porque é como se queimasse.”
As coisas mudaram um pouco quando ele foi autorizado a conviver com outros detentos. Juntos, eles cantavam e dançavam, organizavam aulas de inglês, de cozinha e até de casamento –esmagadoramente jovens, muitos não tinham nenhuma experiência amorosa prévia e queriam ouvir dos casados como era a vida com uma mulher.
Guantánamo distancia você de você mesmo, diz. Muito mais que aprender, o objetivo dessas atividades coletivas era compartilhar memórias, tradições, conhecimentos, religião, para que os detentos tentassem não se perder.
Às vezes, até alguns guardas se juntavam a eles, diz. “Nós não éramos as únicas vítimas de Guantánamo. Muitos guardas e funcionários da prisão também eram. Se eles demonstrassem humanidade e tentassem cooperar conosco, sofriam, porque nós éramos afinal os ‘piores assassinos terroristas’”, diz.
Ainda assim, sua opinião sobre os EUA é curta e grossa. “Eu acredito que o governo americano é o que é Guantánamo”. “O país que prega democracia, direitos humanos, justiça, igualdade. Bobagem. Você não pode ter as duas coisas, não pode. Não pode ter todo esse blablablá e Guantánamo.”