O Campo X-Ray parece um canil gigante. Exceto pela perda de um telhado ou outro, sua estrutura —que consiste em alambrados, espirais de arame farpado e torres de observação— segue de pé, mesmo tendo sido desativada há anos.
A instalação foi montada às pressas na base militar de Guantánamo em janeiro de 2002 para receber os primeiros prisioneiros feitos pelos Estados Unidos nos primórdios da Guerra ao Terror. Foi a porta de entrada para os demais campos. Hoje, restam dois ativos: o 5 e o 6, que não fomos autorizados a visitar.
Neles residem os 30 homens que seguem sob poder americano dos quase 800 que passaram pela base ao longo de todos esses anos, muitos capturados após denúncias de envolvimento com a Al Qaeda feitas em troca de recompensas —e nunca comprovadas.
Desses 30, 19 nunca foram alvo de nenhuma acusação legal e, com exceção de três, todos foram liberados pelos EUA para transferência. Metade desse grupo está em Guantánamo há 22 anos, desde os tempos do Campo X-Ray.
“Não há absolutamente nenhuma justificativa para eles continuarem detidos. Eles deveriam ter sido transferidos há muito tempo”, afirma à Folha Cliff Sloan, enviado especial para o fechamento de Guantánamo durante o governo Barack Obama (2009-2017). “Cada dia que passa é muito, muito lamentável, realmente um desastre em termos de direitos humanos. Simplesmente não há desculpa para não avançar com a transferência deles.”
O ex-presidente conseguiu reduzir em 200 homens a população da prisão. Seu sucessor, Donald Trump (2017-2021), praticamente congelou as transferências. Joe Biden conseguiu efetivar 10.
A justificativa legal do governo para mantê-los presos, mesmo sem acusação, é de que eles seriam “combatentes ilegais” e, por isso, suscetíveis a detenção enquanto representarem uma ameaça. Já advogados e organizações de direitos humanos dizem que as detenções são ilegais e violam o direito internacional.
Há diversas dificuldades para transferir esses homens. A primeira e mais difícil foi imposta pelo Congresso: nenhum preso de Guantánamo pode ser enviado ao território americano, tampouco para certos países, como o Iêmen, terra natal de 16 dos prisioneiros restantes.
Nesse caso, Washington precisa fechar um acordo com um outro país, que não o de origem do detento, para recebê-lo. Advogados de prisioneiros ouvidos pela reportagem dizem que negociações do tipo estavam em curso com Omã, mas foram suspensas em outubro após o início da guerra Israel-Hamas.
O advogado Thomas Wilner, que representa o iemenita Khaled Ahmed Qassim, detido desde 2002, resume, cruamente, o que os críticos diriam caso a transferência fosse efetivada. “Iriam gritar que Biden é frouxo contra o terrorismo.”
“Eu sei que o governo quer fechar Guantánamo, [o secretário de Estado] Antony Blinken está comprometido com isso, mas eles não conseguem ter força política quando estão ao mesmo tempo tentando conseguir dinheiro para a Ucrânia, para a fronteira com o México e por aí vai”, completa.
Em janeiro, as diretorias dos comitês de inteligência do Senado e da Câmara, formadas por democratas e republicanos, enviaram uma carta conjunta aos diretores da CIA e de Inteligência Nacional pedindo que eles não financiem a transferência de prisioneiros de Guantánamo.
“Os EUA enfrentam um ambiente de segurança internacional cada vez mais complexo”, diz o texto. “Estamos preocupados com a ameaça de reincidência entre os indivíduos atualmente detidos na Estação Naval dos EUA na Baía de Guantánamo, em Cuba, que são ou podem se tornar elegíveis para liberação, especialmente dada a atual ameaça terrorista no Oriente Médio.”
Nos primeiros anos de operação da prisão, Wilner travou uma batalha legal para que os detentos pudessem ter direito a uma audiência na Justiça e a habeas corpus, um caminho alternativo para alcançar a liberdade. Conseguiu –em parte. O terceiro elemento da trinca constitucional básica nunca foi reconhecido a esses detentos: o direito ao devido processo legal.
É esse o princípio que garante a acusados acesso às evidências contra eles e ampla defesa, por exemplo. Sem isso, as audiências não têm sentido e é impossível conseguir um habeas corpus, diz o advogado. O pedido de reconhecimento do direito tramita em uma corte federal em Washington. A esperança é que, um dia, chegue na Suprema Corte.
Vinculado ao Centro pelos Direitos Constitucionais, Wells Dixon tem uma visão muito menos positiva dos esforços do governo Biden. Ele representa o iemenita Sharqawi Abdu Ali al-Hajj, em Guantánamo desde 2004, e o somali Guled Hassan Duran, na prisão desde 2006.
Para ele, não só falta vontade política da Casa Branca para efetivar as transferências como o governo resiste na Justiça aos esforços dos advogados para conseguir a liberação de seus clientes. Além de apontar o dedo para os EUA, Dixon também o faz para a comunidade internacional, que, em sua visão, já foi mais colaborativa para receber detentos, mas hoje sumiu. “Acho que o Brasil por exemplo nunca recebeu nenhum detento”, cutuca.
Frank Panopoulos, advogado do queniano Mohammed Abdul Malik Bajabu, em Guantánamo desde 2007, também atribui algum peso aos conflitos em Gaza e na Ucrânia para o freio nas transferências. “Se você der a Biden o benefício da dúvida, ele está tentando, mas tem que lidar com duas guerras e uma campanha pela reeleição”, diz.
Panopoulos diz não acreditar em nenhuma nova transferência neste ano e, se os republicanos vencerem a eleição, sua análise é taxativa: “ninguém vai sair de lá”.
O temor de um retorno de Trump à Casa Branca preocupa os advogados. Em seu mandato, o empresário barrou transferências, e já disse ser contra fechar Guantánamo. Existe uma expectativa, que eles admitem ser bastante otimista, de que Biden finalize a liberação dos detentos restantes após a eleição, ganhando ou perdendo.
Enquanto as disputas se desenrolam do lado de fora da prisão, quem segue lá dentro mantém a esperança de sair, afirmam os advogados –os únicos a terem contato com esses homens além dos guardas e de suas famílias.
“A maior parte deles, certamente os que eu defendi, tem esperança. Ao mesmo tempo, eles esperam sem dúvida morrer em Guantánamo”, afirma Dixon.