Um pequeno grupo de acadêmicos russos e norte-americanos reúne-se secretamente há um ano e meio para discutir meios de chegar à paz na Guerra da Ucrânia. Os encontros são periódicos e contam com o conhecimento e a anuência de Moscou e de Washington.
A Folha conversou com um russo e um ocidental que têm familiaridade com o movimento e contato com seus integrantes. A mais recente reunião foi no mês passado, em Istambul, na Turquia.
Nela estiveram na mesa itens como a neutralidade exigida de Kiev pela Rússia desde que cruzou as fronteiras ucranianas, em 24 de fevereiro de 2022, alegadamente para evitar que o país vizinho aderisse à Otan, o clube militar de 32 membros liderados por Washington.
A conversa tratou mais de divergências do que de consensos, mas pessoas que participaram dela afirmam que houve alguns avanços. O lado russo estaria pronto para aceitar um acordo em que a Ucrânia não ingressaria na aliança ocidental, mas em que as garantias de segurança para o governo de Volodimir Zelenski estariam colocadas de outro modo.
Elas viriam na forma de uma expansão do sistema de acordos militares bilaterais que Kiev tem assinado com alguns países europeus integrantes da Otan, como a França do agora militarista Emmanuel Macron e o Reino Unido.
Vistos com certa indiferença dado seu caráter etéreo, tais arranjos poderiam ser ampliados para se tornar uma forma efetiva de garantir a soberania ucraniana sem a entrada na aliança —o que é impensável para Vladimir Putin, pois consolidaria a expansão a leste do grupo que se acelerou após o fim da União Soviética, em 1991.
O presidente russo, reeleito neste domingo (17) para mais seis anos no cargo, disse considerar que o Ocidente traiu a Rússia, uma vez que segundo sua versão da história os EUA teriam prometido que a Otan não se moveria a leste. Políticos e historiadores americanos dizem que tal promessa nunca ocorreu, mas a expansão em si é fato.
Como uma conversa entre os então presidentes Lech Walesa e Bill Clinton em 21 de abril de 1993 mostra, Varsóvia já pedia a proteção do Ocidente contra o que via como ameaça russa. “Precisamos do músculo dos EUA”, disse o polonês.
Em 1999, Polônia, Hungria e República Tcheca se tornariam os primeiros ex-satélites comunistas, à exceção da Alemanha Oriental reunificada com a Ocidental em 1990, a entrar na Otan. Cinco anos depois, mais sete nações o fariam, incluindo as três ex-repúblicas soviéticas do Báltico, num processo que ainda traria mais quatro países que foram socialistas.
Ironicamente, a guerra de Putin contra o vizinho selou o processo com duas adesões de nações historicamente neutras, a Finlândia e a Suécia. Mas, em Moscou, a Ucrânia é uma linha vermelha: desde os tempos imperiais, o país é, assim como a aliada Belarus, uma área de separação do território russo e de seus adversários no Ocidente.
O grupo de acadêmicos não inclui ucranianos nem tem autoridade negociadora. É uma instância que busca levar e trazer visões de ambos os lados.
Para o Kremlin, a guerra que se trava na Ucrânia é contra o Ocidente liderado pelos EUA. Na mão contrária, decreto assinado por Zelenski em outubro de 2022 proíbe qualquer negociação com a Rússia enquanto Putin, que está na cadeira há quase 25 anos, estiver no poder.
As conversas, de todo modo, já foram mais fáceis. Quando o grupo foi formado, os russos estavam em posição precária na sua invasão: além de terem tido de abandonar a tentativa de conquistar Kiev, perderam territórios importantes no norte e no sul ucranianos.
O Ocidente, animado com os resultados, elevou o envio de armas e ajuda a Kiev, que chegou a R$ 1,2 trilhão em outubro passado, segundo o Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha). Só que a contraofensiva ucraniana de 2023 fracassou, e o apoio decresceu ao menor nível desde então.
O veto a um pacote de R$ 300 bilhões pelos republicanos de Donald Trump no Congresso americano tem pesado, e Macron passou a pressionar a Alemanha e outros países europeus a tomar alguma medida. O problema é que talvez seja tarde.
Especialistas preveem uma ofensiva de Putin neste ano. “Se a ajuda ocidental chegasse a tempo, poderia alternar o momento de novo. Por ora, a guerra terrestre se mostra sangrenta e favorece Moscou”, escreveu o analista-chefe de forças terrestres do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (Londres), Ben Barry.
Logo no início do conflito houve negociações diretas entre russos e ucranianos, primeiro na Belarus e, depois, na Turquia do ambíguo Recep Tayyip Erdogan —que recentemente voltou a se oferecer como mediador. Elas chegaram a produzir um documento inicial, não aprovado ao fim, revelado pelo The Wall Street Journal neste mês.
O texto previa a limitação das capacidades militares ucranianas, sua neutralidade e o reconhecimento da anexação da Crimeia. Estavam em abertos temas como a vasta área tomada por Putin no leste e no sul ucranianos, das quais o presidente deixou de abrir mão ao absorvê-las ilegalmente em setembro de 2022.
As conversas colapsaram no fim de abril, com alguns espasmos via Zoom até junho de 2022. Neste momento, a resistência de Kiev aos termos de Moscou e o incentivo ocidental para que Zelenski lutasse fizeram cessar tudo.
Foi ali que o grupo russo-americano se formou. Na avaliação de quem o conhece, o bom momento russo na guerra irá impedir quaisquer avanços, ao menos até se saber quem será o próximo presidente americano, o atual Joe Biden ou Trump, que já prometeu abandonar Kiev à própria sorte.