Angola, Brasil, Moçambique e Timor-Leste são exemplos citados nesta conversa sobre a busca de soluções para o futuro. Caldas é diretor de Tecnologia, Inovação e Big Data da Rede Geoespacial e lidera a área de alertas antecipados e análise de dados do Programa da ONU para o Meio Ambiente.
ONU News: Olá, Podcast ONU News vai conversar com Alexandre Caldas, especialista das Nações Unidas que trata de áreas que vão desde dados, tecnologia e inovação. Futuro é um tema que vai juntar líderes mundiais aqui nas Nações Unidas para debater diversos assuntos, explorar novas realidades e desafios para os tempos que se aproximam.
A gente recebe com muito prazer Alexandre Caldas, que é diretor da ONU em temas de tecnologia, inovação e Big Data, presidente da Rede Geoespacial da ONU e chefe de alertas antecipados e análise de dados do Programa da ONU para o Meio Ambiente, Pnuma. Seja muito bem-vindo, Alexandre. Obrigado por esta conversa.
Alexandre Caldas, AC: É um grande prazer estar aqui convosco e partilhar algumas ideias nestas áreas, como a tecnologia, os grandes dados e os alertas podem ajudar a humanidade.
ONU News: Vamos falar primeiro de salas da situação: várias plataformas e diversos dados reunidos relativos a diversas agências das Nações Unidas para tomada de decisões. Como é que esta prática, que visa estudar dados ambientais até o universo muito mais amplo, de alguma maneira fará refletir a iniciativa “Um mapa, uma humanidade?”
AC: Vamos pensar da seguinte forma: como aqui falou, o mundo atravessa uma série de crises. Na área ambiental temos a tripla crise planetária que vai desde as mudanças do clima, passa pela perda de biodiversidade, a poluição e a gestão dos lixos.
Num cenário de crise é importante que se tenha uma sala de situação para ajudar a gerir o processo de crise. Essa gestão do processo de crise faz-se desde a preparação, a prevenção, a resposta ao evento e depois a recuperação. São cenários de desastre e de risco. Uma sala de situação traz para esse conjunto, primeiro os dados, depois a informação e o conhecimento para que a tomada de decisões possa, nessas várias fases de preparação, resposta e recuperação, ser feita de uma forma mais ágil, mais efetiva e muito mais eficiente. Começamos por implementar isto na área ambiental ao criar uma sala de situação para o ambiente, que chamamos a World Situation Room, com mais de 33 parceiros distribuídos por todo o mundo, de vários setores, e não só organismos internacionais e o Sistema das Nações Unidas, mas também parceiros privados, grandes empresas de tecnologia e parceiros da sociedade civil como as associações de Citizens Science, ou da ciência ligada à sociedade. Estas salas de situação são sistemas distribuídos, quer em termos intersetores de parcerias, quer sistemas tecnológicos espalhados pelo mundo. Só assim é que podem combater. Portanto, começamos pela área ambiental. Depois avançamos para a área de todos os organismos e entidades das Nações Unidas na área geoespacial. Por quê é geoespacial? Porque a tecnologia geoespacial é fundamental para localizar a informação. Mais de 90% da informação útil é geolocalizada. Isso é muito importante, porque vamos abarcar desde o global, ao regional até ao local das comunidades. Portanto, mais uma vez, uma característica das salas de situação.
Este projeto que falamos agora de “Um mapa, uma humanidade”, põe num espaço e numa sala de situação geoespacial essa mesma informação: de um mapa que depois leva a informação de várias camadas. Vamos pensar, por exemplo, na camada do desenvolvimento sustentável, fornecida pela área do Banco Mundial que oferece os dados na área da agricultura e da área econômica, na área da população pelos dados da Unfpa, na área do ambiente, pela Unep e pelas outras entidades ligadas ao ambiente. Isto na área do desenvolvimento sustentável. Mas depois, esta informação vai ser conjugada, daí a sala de situação, com a informação sobre paz, segurança e conflitos. E então aí temos as outras agências, o Acnur, e o WFP, todas essas agências, peço desculpas por falar na sigla inglesa, das Nações Unidas que trabalham na área da segurança, logística e na área da paz. E todas estas camadas de informação vão sendo conjugadas na sala de situação para ajudar a tomada de decisões.
ONU NEWS: E, sem dúvidas, isso é uma abordagem que contribui para que a ONU tenha um novo olhar sobre essas crises que estão conectadas e têm uma abordagem mais modernizada: uma ONU do futuro, digamos assim, para olhar para tantas crises sobrepostas. Mas eu queria, Alexandre, pedir que pudesse citar exemplos nos países de língua portuguesa, de como esse tipo de abordagem, de sala de situação e de análise de dados, têm contribuído para a prevenção ou para a resposta a crises.
AC: Eu vou dar dois exemplos. Num dos países de língua portuguesa que me é muito caro, portanto, é onde nasci, em Moçambique. É como os sistemas de alerta rápido no combate a um desastre natural, que é muito típico e sistemático em Moçambique, não só mas abarca Madagáscar, Moçambique, o Maláui e depois o Zimbabué. O ciclone tropical que arrasa a cada cerca de dois em dois anos, ou três em três anos no máximo, arrasa esta zona, especificamente, é um ciclone tropical que em si é um evento climático, mas que provoca cheias. Provoca depois, na mesma zona onde acontece, secas profundas no ano seguinte. É um desastre natural que provoca uma destruição massiva e de todos os sistemas: os sistemas de saúde, os sistemas de educação, os sistemas socioeconômicos de Moçambique e desses países. Naturalmente foi preparada em parceria com as entidades locais.
As agências de Nações Unidas envolvidas como o WFP, Unhcr, Unfpa, o coordenador residente das Nações Unidas em Moçambique e a ONU-Habitat. Portanto, estamos a falar de uma ONU que, em conjunto, suporta os parceiros nacionais e locais para o combate a esta situação de desastre natural. E naturalmente, estamos a falar de uma sala de situação que é a de Moçambique, em que o sistema das Nações Unidas dá o apoio técnico necessário para responder à situação. Interessante, e agora não num país de língua portuguesa, mas na Tanzânia, foi lançada a primeira sala de situação de controle de Sistema de Alerta Rápido, a grande iniciativa do secretário-geral das Nações Unidas, para um sistema de alertas rápidos que abrange todos os países do mundo. Interessante e não num país de língua portuguesa, na Tanzânia foi lançada, como parte de uma rede de centros que vai ser distribuída por toda a África, uma sala de situação especializada para os alertas rápidos para os desastres naturais que envolvem não só o clima, mas os conflitos em toda a África. Portanto, isto é um bom exemplo de como esse modelo das salas de situação pode ser replicado e ser escalado para o nível global. Esses temas de o programa das Nações Unidas do secretário-geral para os alertas rápidos para todos tem um significado especial em termos futuro. Estamos a falar que neste momento apenas 50% das nações do mundo, dos 193 países das Nações Unidas estão dotados com algum tipo de alerta rápido. Apenas 50%. Portanto, o grande objetivo é um plano de ação que vai até 2027, para dotar pelo menos todos os países do mundo de algum sistema de alerta rápido. O que vai acontecer é que muitas destas salas de situação vão começar a aparecer em muitos dos países do mundo, principalmente o Sul Global, que abarca países onde este tipo de impactos têm um efeito cinco vezes superior em relação aos outros países. Portanto, os países em desenvolvimento e os países do Sul Global sofrem particularmente de desastres. O impacto é imensamente superior. Portanto, daí que a Tanzânia tenha dado o exemplo de ser o primeiro país, e na África, onde foi instalado esse tipo de sala de situação.
ONU News: Alexandre Caldas, o secretário-geral da ONU vem dando o alerta de que vêm aí incertezas e mudanças disruptivas. O Pnuma fez um estudo e identificou 18 sinais de mudança que precisam de atenção em todo o mundo. Como é que a ONU pode atuar de uma forma inovadora diante deste tipo de previsão estratégica que se está a fazer?
AC: A previsão estratégica é particularmente importante, porque a complexidade, a incerteza e a instabilidade são três drivers que não só existem neste momento, como vão aumentar num futuro próximo. Portanto, nas próximas décadas, vamos olhar, por exemplo, para vários cenários temporais. No curto prazo até 2030. No médio prazo entre 2030 e 2050. No muito longo prazo a partir de 2050, estamos a falar em escalas temporais desta natureza. Estes três drivers de mudança, a complexidade, a incerteza e a instabilidade vão aumentar. O que isto significa é que os planos estratégicos, vamos pensar no framework dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e dos mais de 250 indicadores para estes objetivos. Quando se estabelece um plano há 15 anos para a humanidade, que abarca os 193 países das Nações Unidas, estes planos estratégicos globais vão ter que passar a estar preparados para três fatores: a complexidade, a incerteza e a instabilidade. É disso que estamos a falar em fazer prospectiva estratégica. De adaptar os planos estratégicos para serem resilientes e estabelecer cenários diferentes consoante as situações que vão aparecendo.
Dando o caso do trabalho que foi efetuado, agora publicado pelo Pnuma, na área de prospectiva estratégica e ambiental, dá para perceber que perante os 18 sinais de mudança no futuro têm que se estabelecer cenários de resposta diferentes consoante os sinais que vão se tornando realidade. É aí que está o valor da perspectiva estratégica – de preparar os sistemas e as entidades para agirem de forma diferente, em cenários diferentes, consoante os sinais que vão emergindo. Não só na área ambiental, isto é muito significativo, por exemplo, na área da paz e segurança. Portanto, é óbvio que nestes três cenários temporais: até 2030, 2030-2050 e após 2050, as mudanças que se vão registrar na área da paz e segurança vão afetar de forma brutal o sistema das Nações Unidas. Portanto, a perspectiva estratégica vai preparar, tornando mais resiliente, o estabelecimento de cenários para esses fatores que vão evoluindo. Eu espero que isto dê uma noção de como é que vai ser absolutamente estratégico preparar os próximos planos de uma forma mais resiliente e com mais prospectiva estratégica. E dei esses dois exemplos de forma propositada porque afetam vários dos pilares das Nações Unidas, não só o do desenvolvimento sustentável e o framework dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável é um exemplo, mas também a paz e segurança. Temos que ser realistas e dizer que hoje em dia os planos estratégicos não estavam preparados para estas alterações, não eram estabelecidos como perspectiva estratégica. Portanto, vamos ter que readaptá-los e passar a fazer os planos, adotando esta perspectiva estratégica, integrando esta perspectiva estratégica já presente.
ONU News: Para a gente partir para a conclusão dessa conversa superinteressante, eu queria que você comentasse bem rapidamente um outro aspecto do trabalho com dados. Não se trata só de tecnologia e computadores, mas também de ouvir as populações, inclusive povos tradicionais, povos indígenas. Então como é que esse elemento da ciência cidadã contribui para que a ONU esteja preparada de fato para lidar com esse futuro que está chegando aí com tantos desafios.
Estamos a falar da consulta e do trabalho em comunidades e da participação das comunidades na elaboração de soluções. Um exemplo muito concreto que trabalhamos em África, em países do continente como na Serra Leoa e outros países da África, também Moçambique e Angola, foi na gestão dos cursos de água dos rios. Como é que as populações, e utilizando técnicas como a ciência social, podem colaborar para não só a recolha dos dados, mas o tratamento dos dados e a tomada de decisões diretamente. E é um exemplo muito bem-sucedido de participação colaborativa das comunidades em soluções que trazem soluções para a gestão das águas.
Temos um outro exemplo, e está a acontecer num projeto em Timor-Leste, onde a mesma metodologia de gestão participativa das comunidades e ação participativa das comunidades no terreno, e isto envolve também capacitação, como é óbvio, mas para a gestão da qualidade do ar ambiental. Existe uma variável muito interessante que as pessoas não conhecem, que é o PM 2.5, que mede a qualidade do ar. Hoje em dia 90% da população mundial, dos 8 bilhões de pessoas, vivem em condições com falta de qualidade do ar ambiental. Em Timor-Leste está se a desenvolver este projeto também à escala das comunidades para dotar as comunidades de capacitar, não só de recolha dos dados com a instalação de sensores para a qualidade do ar ambiental, mas também depois de análise dos dados e da ação para que esses planos de urbanismo etc., possam responder ao problema da qualidade ambiental. São dois exemplos. Pode haver uma tendência para tornar estes projetos e estes planos muito top-down. Não. Muitos destes projetos vão beneficiar exatamente da perspectiva de como é que as comunidades locais podem participar ativamente nas soluções que vão resolver muitos desses problemas. Estes são bons exemplos de como isto acontece. Poderia dar um outro terceiro exemplo.
Como estamos a falar de uma comunidade lusófona também é interessante. O mesmo gênero de metodologia está a ser utilizar no Brasil na área da perda de biodiversidade e da desflorestação, como um dos casos muito típicos na Amazônia e no Brasil, para que as comunidades locais possam ativamente participar nos processos de como combater a desflorestação e como proteger a biodiversidade. São exemplos de como é muito mais efetiva, muitas vezes, a participação na área das comunidades e na área local do que a implementação de projetos só à escala global. Obviamente, estes projetos podem escalar e replicar a escala muito global.
ONU News: E mesmo para terminar, como é que esta ONU do futuro com análises preditivas, com modelos de risco, pode melhorar, por exemplo, áreas vitais como a ação humanitária ou manutenção e consolidação da paz?
Vamos aplicar aquilo que é a fronteira nesta capacidade preditiva. Fala-se muito em inteligência artificial conjugada com os grandes dados. O agora se tornou comum, como o ChatGPT e tecnologias generativas, são um bom exemplo disso. É pela capacidade de amalgamarem dados de uma forma massiva e de criarem informação e conhecimento em cima desses dados e vão poder ajudar, como por exemplo, se nós mapearmos os fluxos migratórios numa zona de conflito, podemos prever ou ajudar a prever a ação de como os movimentos das pessoas deslocadas e dos refugiados, mas não só: as pessoas que, dada a ação de conflito vão estar em situação de risco.
Conseguimos estabelecer dois ou três cenários. Se o cenário de guerra permanecer durante um curto espaço de tempo, se se conseguir encontrar uma solução, os movimentos migratórios das pessoas deslocadas vão acabar se expandindo desta forma. Se o outro cenário não acontecer dessa forma, se houver um processo de paz e reconciliação, como é que poderemos agir? Este é um bom exemplo de como é que diretamente a utilização destas tecnologias vai ser feita. Obviamente que isto vai permitir proteger as populações, os direitos humanos das populações envolvidas de uma forma muito mais ágil, de uma forma muito mais célere e mais fundamentada, porque a pessoa está dotada dessa capacidade do terreno.
Eu vou dar um exemplo muito mais palpável, por exemplo, a utilização da inteligência artificial no combate à pesca ilegal. Porque a utilização de geosatélites permite identificar a movimentação dos barcos em qualquer zona do mundo em tempo real. E se implementarmos modelos de inteligência artificial em cima dessas camadas de dados podemos prever onde é que estão as zonas e identificar as zonas de pesca ilegal de diversas formas no mundo. São exemplos muito concretos de como esta ação vai passar a ser utilizada. Numa reunião que fizemos na semana passada com a Municipalidade de Shangai, eles demonstraram-nos que estão a conseguir fazer a capacidade de previsão de cheias e de inundações neste momento com 10 dias de antecedência. A Europa tinha modelos preditivos que apontavam para sete dias de antecedência. Estamos a falar em ganhar três dias em antecedência, preparação e prevenção num combate de um cenário, de uma inundação que poderia matar, poderia tirar a vida a milhões de pessoas.
ONU News: O que esses exemplos deixam claro é que a capacidade de previsão pode salvar vidas. Com isso a gente agradece muito a sua participação aqui, Alexandre, por trazer essa dimensão tão inovadora de como a ONU está se reinventando para lidar com tantos desafios e de uma forma mais eficiente.
Eu é que agradeço esta oportunidade. Eu costumo simplificar em três p’s: as pessoas, porque estamos a falar em 8 bilhões de pessoas, uma humanidade. O segundo p é os países. Estamos a falar em 193 nações e eu dou um foco muito especial aos países em desenvolvimento, aos países do Sul Global, porque são esses onde o impacto humanitário é maior. E o terceiro p é o planeta, porque todos vivemos num planeta. Portanto, são as pessoas, os países e o planeta. E o interessante é que isto abrange todas as línguas, porque em quase todas as línguas os mesmos três p’s aplicam-se. Em muitas línguas os mesmos países aplicam-se – people, places and planet. A capacidade de utilizar tecnologias para salvar vidas e proteger a propriedade vai impactar nestes três p’s, nas pessoas, nos países e no planeta.