Quando Alexei Navalni estava vivo, o Kremlin procurava retratá-lo como uma figura inconsequente, indigna de atenção, mesmo enquanto as autoridades russas o vilipendiavam e o atacavam com uma ferocidade que sugeria o contrário.
Na morte, pouco parece ter mudado.
O presidente russo, Vladimir Putin, não disse uma palavra em público sobre Navalni nas duas semanas desde a morte do opositor, aos 47, em uma prisão no Ártico.
A televisão estatal russa tem sido igualmente silenciosa. A cobertura jornalística da morte de Navalni se limitou a uma breve declaração das autoridades prisionais no dia do fato, além de alguns comentários fugazes na televisão por apoiadores do governo para aliviá-lo da responsabilidade pelo ocorrido e tentar manchar a reputação da mulher do opositor, Iulia Navalnia, que anunciou que continuará o trabalho de seu marido.
Na sexta-feira (1°), enquanto milhares se reuniam na capital russa para o funeral de Navalni, aplaudindo seu nome, Moscou agiu como se a homenagem fosse um evento sem importância. Os noticiários ignoraram completamente a cerimônia. Quando questionado naquela manhã se o Kremlin poderia comentar sobre a importância política de Navalni, o porta-voz de Putin respondeu: “Não pode”.
Sam Greene, professor de política russa no King’s College, em Londres, afirma que parte da estratégia do Kremlin quando se tratava de Navalni era “não dar mais oxigênio a ele do que absolutamente necessário, ou, se possível, oxigênio nenhum”.
Putin por anos se recusou a dizer o nome de Navalni. A televisão quase nunca o mencionava. As autoridades o proibiram de concorrer à Presidência na eleição de 2018 e, mais do que isso, buscaram impedir sua tentativa de estabelecer um jogo político democrático, no estilo do Ocidente, na Rússia.
Greg Iudin, sociólogo russo que hoje é pesquisador na Universidade de Princeton, chama a abordagem do Kremlin de “omissão estratégica”.
Ao remover Navalni da vida pública oficial, o Kremlin sinalizou que ele não era um político alternativo legítimo, mas sim um extremista, um terrorista ou um inimigo do Estado, operando fora dos limites da política orquestrada da nação, diz o pesquisador.
“A maneira como eles criam uma percepção de política na Rússia é que o que quer que esteja ausente do discurso oficial é irrelevante, porque de qualquer maneira não tem chance de se materializar”, afirma Iudin. “Se ninguém o cita na TV, você não existe.”
Ao mesmo tempo, o aparato coercitivo da Rússia foi atrás de Navalni com uma ferocidade crescente, envenenando-o em 2020, aprisionando-o em condições desumanas e, finalmente, enviando-o para uma remota instalação acima do Círculo Ártico. Nesse processo, ele foi difamado em um filme e atacado com tinta verde enquanto era demonizado como um fantoche do Ocidente.
Mesmo sem o poder da televisão, Navalni conseguiu chamar a atenção na Rússia usando a internet —foi essa a maneira como milhões de russos acompanharam as notícias de sua morte e de seu funeral.
A presença online de Navalni minou as insinuações do Kremlin de que ele era irrelevante. Em 2021, ele reuniu mais de 100 milhões de espectadores quando denunciou um palácio secreto construído para Putin no mar Negro, deixando poucas dúvidas sobre o poder do líder da oposição.
Navalni manteve sua estatura como o rosto da oposição mesmo na prisão, comunicando-se por meio de mensagens escritas que sua equipe publicava como postagens em redes sociais e discursos no tribunal que seu time transformava em vídeos para o YouTube.
Iudin diz: “A política russa havia se reduzido há muito tempo a um tipo de impasse entre dois homens, entre Putin e Navalni”, e “isso era absolutamente claro para qualquer um”.
Mas não de acordo com a televisão russa.
Viatcheslav Nikonov —neto do ministro das Relações Exteriores da era Stálin, Viatcheslav Molotov—, fez uma declaração curta sobre a morte de Navalni no principal canal da Rússia, o Channel One.
Nas horas e dias subsequentes, as emissoras do país mencionaram Navalni apenas em alguns breves comentários, ao mesmo tempo em que espalhavam teorias de conspiração bizarras.
Margarita Simonian, chefe da rede de notícias estatal RT, por exemplo, disse em um programa de entrevistas que o momento da morte levantava “grandes questões” porque a esposa de Navalni estava participando da Conferência Anual de Segurança de Munique na época e fez uma declaração “sem nem borrar o rímel”.
“Isso mostra que, no mínimo, essa mulher não amava muito o marido, mas ama muito o poder e tudo o que ele implica”, afirmou Simonian.
Ela e outros apoiadores do governo sugeriram que o Ocidente havia planejado a morte de Navalni para ofuscar o impacto da recente entrevista de Putin ao ex-apresentador da Fox News Tucker Carlson. Eles não explicaram como o Ocidente poderia ter feito isso enquanto o opositor estava sob custódia russa.
Eles ainda argumentaram que a morte de Navalni era a última coisa que o Kremlin queria, dado que fornecia outro ímpeto para o Ocidente pressionar a Rússia.
“O que poderia ser melhor para incitar acusações do que a morte repentina do principal crítico do Kremlin, como o falecido foi chamado na imprensa europeia?”, perguntou o comentarista Dmitri Kiseliov em seu programa.
Após o ciclo inicial de notícias, os canais de televisão ficaram em silêncio, mantendo a morte de Navalni e as perguntas não respondidas sobre ela em grande parte fora do radar, mesmo enquanto seu rosto estampava as capas de jornais e revistas ao redor do mundo.
Em uma pesquisa do Centro Levada divulgada na sexta-feira, 21% dos russos disseram que não tinham ouvido falar da morte de Navalni, e outros 54% disseram que ouviram algo, mas de maneira vaga.
Em paralelo a isso, “trolls” alinhados ao Kremlin entraram em ação na internet para amplificar críticas a Navalnaia depois que ela anunciou que assumiria a missão do marido.
Pesquisas realizadas pelo Antibot4Navalny, grupo de voluntários anônimos que monitora a atividade de trolls russos, e pela Londres Reset, organização sem fins lucrativos com sede em Londres com foco em democracia e tecnologia, descrevem a coordenação de uma campanha com o objetivo de difamar a mulher de Navalni online, o incluiu a proliferação de fotografias adulteradas e alegações falsas sobre seus supostos “namorados”.
Essa abordagem continuou durante o funeral de Navalni na sexta-feira.
A televisão praticamente ignorou o evento, enquanto os meios de comunicação online pró-Kremlin e perfis nas redes sociais geravam desinformação destinada aos falantes de russo.