Já se passaram vários dias desde que Donald Trump subiu ao palco de um debate presidencial dos Estados Unidos e repetiu as afirmações falsas sobre imigrantes haitianos comendo animais de estimação em uma pequena cidade de Ohio. É bastante óbvio que ele, seu companheiro de chapa, J.D. Vance, e sua campanha veem utilidade a longo prazo em manter essa narrativa.
Em um discurso no último dia 13, Trump disse: “Estou irritado com os imigrantes haitianos ilegais tomando conta de Springfield, em Ohio” —mesmo que a maioria dos haitianos esteja na cidade legalmente.
Em uma entrevista no dia 15, Vance deu a impressão de que estava inventando coisas para amplificar a difamação contra a comunidade haitiana de Springfield: “Se eu tiver que criar histórias para que a mídia americana realmente preste atenção no sofrimento do povo americano, então é isso que farei”.
O que Trump está fazendo é importante para o resultado da eleição, e não se trata apenas da habitual incitação racial destinada a estimular parte de sua base. Ele falhou por semanas em encontrar uma linha de ataque eficaz contra Kamala Harris.
Mas com Springfield, o ex-presidente encontrou um argumento baseado no medo que coloca a questão da imigração bem no centro de uma cidade do Meio-Oeste em um dos estados mais importantes da eleição.
E parece que ele e Vance veem isso como um argumento mais potente do que apenas falar sobre a fronteira. Há motivos para acreditar que eles estão tentando incitar a raiva e obter apoio público em torno das políticas de imigração que Trump promoveu em seu primeiro mandato e que ele espera promover em em um segundo.
Trump passou anos falando sobre o suposto flagelo da imigração do México e da América Central e do Sul, mas isso não produziu o vilão ideal que concentraria perfeitamente o sentimento público.
Mas Trump sabe o que funciona e como se apoiar nisso. Ele começou sua campanha presidencial de 2016 difamando os imigrantes mexicanos como pessoas “trazendo crime, drogas e estupradores”, mas mais tarde direcionaria sua retórica para as cidades do interior, pintando especialmente a Chicago negra como um inferno sem lei.
O mito da selvageria negra permanece tão gravado no inconsciente coletivo americano que muitos são rápidos em acreditar nele, mesmo sem evidências. E assim, Trump voltou a explorá-lo; parece claro que seu ataque aos imigrantes haitianos, que são de ascendência africana, é em parte uma tentativa de vincular o sentimento anti-imigrante mais amplo ao sentimento antinegro.
Isso está em sintonia com sua caracterização, alguns anos atrás, do Haiti como um “buraco de merda” — um lugar de onde as pessoas, ele parece querer que pensemos, são obviamente incivilizadas e, portanto, incapazes de se integrar ao caldeirão americano.
Mas é ainda mais do que isso. Quando se olha para os argumentos feitos, ao longo do tempo, por Trump e por alguns de seus aliados, a narrativa dos haitianos que comem cães e gatos parece estar preparando o terreno para aspirações nacionalistas.
De fato, esse episódio remete aos sentimentos expressos em torno do Ato de Exclusão dos Chineses de 1882. Em um caso da Suprema Corte de 1884 desafiando a aplicação dessa lei, o juiz Stephen J. Field escreveu, em sua opinião discordante, que os imigrantes chineses “permaneceram entre nós como um povo separado, mantendo suas peculiaridades originais de vestimenta, maneiras, hábitos e modos de vida, que são tão marcados quanto sua compleição e idioma”, e que “eles não se assimilam e não se assimilarão com nosso povo”.
Durante o mesmo período da história americana, o oficial do Exército Richard Henry Pratt, que fundou uma escola com o propósito de, nas suas palavras, civilizar crianças indígenas, articulou sua teoria de assimilação dos povos nativos: “Mate o índio nele e salve o homem.”
Diante desse pano de fundo, não é difícil ver as formas de caluniar os haitianos como uma maneira de dizer que eles são apenas mais um grupo que não pertence. É um caso que poderia ajudar a gerar apoio futuro para deportações em massa. É uma peça potencial no argumento para acabar com a cidadania por nascimento —algo que Trump disse, no ano passado, que poderia e iria realizar por decreto— e para expandir um “projeto de desnaturalização”.
Na medida em que Trump é influenciado pelos objetivos do Projeto 2025, apesar de negá-los, isso poderia significar quase qualquer coisa do ponto de vista dele. Quem pode garantir que uma segunda administração Trump não acabaria por considerar fraudulentas, nulas e sem efeito quaisquer reivindicações de asilo ou status de refugiado de pessoas vindas de países caribenhos?
(Não se esqueça de que pouco depois de dizer: “Eu acho que o Islã nos odeia”, Trump instituiu sua “proibição muçulmana”.)
Fazer acusações amplas e infundadas contra a comunidade haitiana de Springfield e então sugerir, com base nessas acusações, que os membros da comunidade daquela nação estão destruindo seu novo lar ilustra o quão facilmente slogans podem influenciar resultados políticos e de políticas.
Em sua essência, esse embuste deve ser visto como parte de uma cruzada para construir apoio não apenas para fechar as portas para imigrantes, mas também para expulsá-los do país.
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