Embora a detonação de centenas de pagers e de walkie-talkies no Líbano tenha chamado mais a atenção por sua audácia, engenhosidade e ineditismo, é possível que os objetos escolhidos para levar a cabo essa ação, assim como o método empregado e seus resultados, configurem crimes de guerra, incluindo terrorismo.
Em conflitos armados como o que se desenrola entre Israel e o Hezbollah, os meios e métodos escolhidos pelos beligerantes para atingir seus objetivos militares não são ilimitados; eles estão condicionados a uma série de princípios legais, dentre os quais destacam-se o de distinção e de proporcionalidade.
Esses princípios têm valor consuetudinário —ou seja, são normas costumeiras e arraigadas, de aceitação universal, que devem ser respeitadas tanto por atores estatais quanto não estatais, em conflitos que sejam legais ou ilegais, do ponto de vista da Carta da ONU; e nem mesmo a violação dessas normas por parte de um dos lados desobriga o outro lado de cumpri-las.
De acordo com esses princípios, os beligerantes só podem escolher meios e métodos de combate que, por sua natureza intrínseca (no caso de armas e munições), ou por sua forma de emprego (no caso das táticas e estratégias), sejam capazes de distinguir os civis dos combatentes engajados no conflito. A diferença entre eles é fundamental: civis nunca podem ser considerados alvos legítimos, ao contrário dos combatentes.
A detonação de pagers e de walkie-talkies pode violar o princípio de distinção de duas maneiras: primeiro, porque esses utensílios são de natureza civil, ainda que possam ser adquiridos e usados por combatentes do Hezbollah.
Depois, o método de detonação —remota, simultânea, indiscriminada, sem verificação visual do alvo— não oferece garantia de que a pessoa atingida será um combatente, não um civil. Então, do ponto de vista dos meios escolhidos (utensílios civis) e do método (detonação remota e sem aferição do alvo), há um problema legal, evidenciado pelo fato de que pelo menos duas crianças morreram nessa ação.
O segundo princípio que parece ter sido violado é o da proporcionalidade, segundo o qual o dano colateral causado aos civis e aos bens civis numa operação específica e pontual não pode ser excessivo em relação à vantagem militar obtida.
Para cada membro do Hezbollah atingido, quantos civis foram mutilados ou mortos por estarem usando esses aparelhos ou por estarem próximos a quem os utilizava? Essa é uma norma subjetiva; ela não traz números nem percentuais de civis mortos por combatentes neutralizados, mas contém a advertência de que a balança deve pesar em favor da proteção dos civis —ou seja, não se pode optar simplesmente por matar centenas ou milhares de civis sob o argumento de que é provável que alguns combatentes acabarão morrendo também. Esse é um dano excessivo e desproporcional.
Além da violação desses dois princípios genéricos e abrangentes, pode ter havido também violação à norma da Convenção sobre Certas Armas Convencionais, de 1980, que trata especificamente de “armadilhas explosivas” —que não podem ser disfarçadas dentro de objetos civis.
São citadas nominalmente as inserções de armadilhas em coisas como brinquedos, itens religiosos, utensílios de cozinha, alimentos e animais vivos ou mortos. Pagers e walkie-talkies não são mencionados, mas satisfazem o critério de objetos civis.
Por fim, essa ação preenche requisitos da definição de terrorismo: atos que têm por objetivo semear entre a população o temor de que qualquer um, a qualquer momento e em qualquer lugar possa ser vitimado por ataques indiscriminados que tenham por objetivo promover uma pauta e obrigar alguém —um país, um governo, um grupo— a agir ou a deixar de agir de uma determinada forma.
Desse ponto de vista, não faz diferença se as mortes estão sendo causadas por explosivos colocados em caminhões, em pessoas ou em pagers e walkie-talkies usados nas ruas, no mercado ou no transporte público.