Na 15ª noite do Ramadã, na Cidade de Belize, Majid Khan e sua família se sentaram para o ifatr, a tradicional refeição feita para quebrar o jejum de horas do dia. Havia perna de cordeiro que Majid, ex-detento de Guantánamo, havia abatido, doces trazidos por uma irmã e tâmaras da Arábia Saudita.
O clima estava um pouco agitado, mas não o suficiente para perturbar o sono do bebê Hamza, que nascera duas semanas antes. A conversa era breve, sobre se o prato de biryani –arroz indiano– estava muito apimentado e como o cordeiro estava perfeitamente assado.
Essas são questões mundanas, que se tornaram mais significativas porque Khan, um antigo mensageiro da Al Qaeda, estava comemorando com sua esposa, Rabia, e sua filha, Manaal, em uma casa em Belize, sua nova pátria adotiva.
Durante duas décadas, uma refeição em família não foi possível. Após os ataques de 11 de setembro de 2001, Khan se juntou à Al Qaeda, concordou em se tornar um homem-bomba e entregou US$ 50 mil que seriam usados em um atentado em um hotel na Indonésia. Por seus crimes, ele foi mantido prisioneiro pelos Estados Unidos, torturado pela CIA e depois preso na Baía de Guantánamo. Ele se declarou culpado e colaborou com o governo. Durante esse tempo, sua esposa o aguardava no Paquistão.
“Eu estava esperando por ele há 20 anos”, disse Rabia Khan com um suspiro de satisfação. “Todos diziam: ‘Você é corajosa. Você é forte.'” As circunstâncias exigiam isso. “Agora eu digo a Majid: ‘Tudo depende de você, não de mim’”.
Grandes questões da vida aguardam essa família. Será que Majid, 44, conseguirá levar adiante seu recém-criado negócio de importação de vasos de terracota? Será que Rabia, 40, precisará levar o bebê Hamza ao México para consultar um especialista para tratar de um problema renal? Onde Manaal, 20, fará faculdade para se tornar dentista?
Majid Khan ainda precisa encontrar assistência médica para os ferimentos que sofreu nas prisões secretas da CIA no exterior. Ele ainda não se adaptou ao país que acolheu sua família e não conseguiu abrir uma conta bancária por causa de seu passado.
“A vida é um teste”, disse ele, descrevendo-se como um homem com o copo meio cheio. Ele vê o próximo capítulo de sua vida como uma oportunidade de consertar as coisas. Ele foi magoado, disse, e fez coisas que magoaram outras pessoas. Ele completa suas observações com “Que Deus perdoe”.
Paquistanês, Khan cursou o ensino médio em Baltimore e se radicalizou após a morte de sua mãe em 2001. Ele partiu para o Paquistão naquele ano, após os ataques de 11 de setembro, aos 21 anos, e se casou com Rabia em um casamento arranjado. Ele também se uniu a membros da Al Qaeda e foi recrutado para ser um homem-bomba em um ataque nunca realizado contra o hoje ex-presidente do Paquistão, Pervez Musharraf. Suas decisões, segundo ele, foram impetuosas e erradas.
Ele foi o primeiro prisioneiro torturado sob custódia da CIA a se declarar culpado de crimes de guerra, quase uma década depois de sua prisão como “detento de alto valor”. Dezesseis meses depois que um júri militar dos EUA condenou a forma como era tratado, Belize permitiu que Khan se restabelecesse no país como um gesto humanitário. Por insistência de Belize, os EUA pagaram sua casa, seu carro, seu telefone e forneceram uma ajuda de custo.
Rabia Khan passou esses anos como mãe solteira com seus pais e uma casa cheia de irmãs e irmãos, sobrinhos e sobrinhas, criando Manaal, seu filho que nasceu após a captura de Majid. Em Guantánamo, ele rezava sozinho, dormia o dia todo e comia sozinho. “Você se acostuma com isso”, disse ele.
Eles se reencontraram dois meses após sua libertação. Khan encontrou sua filha pela primeira vez na sala VIP do aeroporto de Belize. O marido e a mulher que se separaram durante seus 20 e 30 anos não se sentiam como estranhos. “Não sei por que”, disse Rabia Khan. “Por causa das cartas, talvez?”
Manaal Khan confidencia que foi um ano emocionante, começando com a notícia repentina de que o pai que ela nunca conheceu havia sido libertado da prisão. Oito semanas depois, ela e sua mãe viajaram 48 horas –de Karachi, no Paquistão, a Doha, no Qatar, a Nova York, a Miami e à cidade de Belize– e se juntaram a ele.
Fora de casa, ela e sua mãe usam vestes e cobrem os cabelos com um hijab e o rosto com máscaras para Covid, uma versão moderna do niqab. Ele dirige o carro da família, um Chevrolet Equinox usado. “Sou um paquistanês de coração com um pouco de cobertura americana”, disse ele. “Portanto, sou um pouco feminista. Mas acredito estritamente na modéstia muçulmana. E na honra. Tenho que me certificar de que minha filha seja recatada até se casar.”
Belize, com cerca de 415 mil habitantes, é do tamanho de Nova Jersey, com cerca de 5% de sua população. O idioma oficial é o inglês, o que ajuda. Mas para Majid Khan a integração tem sido um desafio.
“Ele ainda não se sincronizou com o laissez-faire de Belize”, disse o líder de sua mesquita, Kaleem El-Amin, conhecido como Irmão Kaleem. “Acho que ele precisa de um pouco mais de tempo”. Khan ainda não montou uma loja para seu negócio, que vende vasos pintados do Paquistão, nem encontrou um grande comprador comercial.
Parte do problema é que nenhum banco se dispôs a abrir uma conta internacional para o homem que entregou US$ 50 mil a um afiliado da Al Qaeda, sem saber, segundo ele, qual era o propósito da conta. Ele já estava sob custódia dos EUA quando o dinheiro foi usado em um atentado a bomba que matou cerca de uma dúzia de pessoas em um Marriott Hotel em Jacarta, na Indonésia, em 5 de agosto de 2003.
Belize culpa as regulamentações sobre finanças globais impostas após o 11 de setembro. Um funcionário do governo que discutiu o problema sob condição de anonimato disse que a questão estava fora do alcance do governo de Belize. Os serviços públicos da família estão no cartão de crédito do pai de Khan, que o visita por longos períodos. Qualquer negócio que ele faça requer dinheiro e, às vezes, um sócio belizenho.
Sua esposa lhe disse que às vezes ele se debate enquanto dorme, mas ele não se lembra de nenhum pesadelo. Khan teve duas consultas gratuitas com um psiquiatra, mas optou por não continuar o tratamento, que custava US$ 100 por sessão. O médico não tinha experiência em trauma de tortura e “não sabia como era a vida na prisão”, afirmou. “Eu preciso ser tratado”, disse ele. “Mentalmente, fisicamente.”
Todas as sextas-feiras, ele vai à mesquita para rezar em uma comunidade de muçulmanos, o que lhe foi negado durante seu tempo sob custódia dos EUA. A comunidade o acolheu desde o primeiro dia, sem fazer perguntas, disse o irmão Kaleem, o imã, que se converteu ao islamismo na década de 1970 e foi treinado na Arábia Saudita. Esse é o jeito de Belize: calmo e receptivo. “Se ele ficar aqui por tempo suficiente, talvez seus filhos entendam este lugar”, disse ele.
Rabia Khan diz que seu marido é uma versão mais suave do homem com quem ela se casou. Em suas palavras, ele é parte americano, parte paquistanês, parte árabe.
Quando Khan fala sobre sua vida, sua filosofia não é muito diferente do que ele disse a um júri militar em 2021. Suas ações com a Al Qaeda prejudicaram as pessoas e foram erradas, disse ele. O mesmo aconteceu com a tortura, que ele descreveu ao painel. Foi seu primeiro relato público sobre o que lhe foi feito, e ele disse que perdoou seus captores.
“A razão pela qual eu perdoo é que fiz muitas coisas ruins”, disse ele, sentado em seu sofá, com o bebê dormindo na dobra do braço. “A questão é que não tenho rancor. Eu poderia ter ficado paralisado por 20 anos devido a um acidente de carro. Deus decidiu: ‘Vou colocar esse teste em você’.”