A quase cem metros abaixo do nível do mar, a então rainha do Reino Unido, Elizabeth 2ª, e François Mitterrand, à época presidente da França, inauguraram há três décadas o Eurotúnel, marco da engenharia moderna que conectou a Inglaterra à Europa continental.
A megaobra quebrou paradigmas tecnológicos e sociais. Ainda hoje o maior túnel subaquático do mundo, o empreendimento simbolizou o fim do isolacionismo britânico, que por séculos foi fundamental para a defesa da região. A passagem liga Folkestone (sul da Inglaterra) a Coquelles (norte da França) e tem 50,5 quilômetros de extensão, dos quais 37 km ficam sob o canal da Mancha.
O projeto foi assinado em 1986, e as obras começaram dois anos depois. A inauguração ocorreu em 6 de maio de 1994, após 4,65 bilhões de libras investidos, o equivalente a R$ 67,6 bilhões em valores atualizados. “Temos a partir de agora, madame, uma fronteira terrestre”, afirmou Mitterrand após cruzar o canal acompanhado da monarca em um Rolls-Royce.
Foi o começo de uma nova era. A proposta saiu do papel quase dois séculos depois de ser pensada pela primeira vez —planos de uma ligação direta entre a ilha e o continente datam de 1802, pouco antes do início das guerras napoleônicas. Mas foi justamente o temor de que o projeto pudesse colocar a segurança nacional em risco que impediu o seu avanço por décadas a fio.
Três fatores contribuíram para a proposta se concretizar. O primeiro, claro, foi a evolução da tecnologia, que tornou a construção um pouco menos complexa e custosa. O segundo foi o desenvolvimento da aviação, o que fez cair por terra a sensação de que a Inglaterra, outrora conhecida como rainha dos mares em função de seu poderio naval, permaneceria distante de seus inimigos. O terceiro foi a recessão econômica que atingiu vários países após a crise do petróleo de 1979 e forçou os líderes políticos a buscarem alternativas de negócio e se aproximarem de seus vizinhos.
Anos antes, em 1975, os britânicos já haviam decidido em referendo pela permanência na Comunidade Econômica Europeia, organização predecessora da União Europeia. Depois, no fim da década de 1980, um dos gatilhos da crise interna no Partido Conservador que levaram à renúncia da então primeira-ministra Margaret Thatcher foi sua recusa em integrar o Reino Unido ao restante da Europa.
O momento, portanto, era de otimismo com o chamado projeto europeu, que previa maior integração política e econômica. “Era necessário algo simbólico e ao mesmo tempo efetivo: nada melhor do que reanimar a ideia do túnel sob o canal da Mancha”, diz Vinícius Vieira, professor da Fundação Armando Alvares Penteado e que fez doutorado em relações internacionais na Universidade de Oxford, na Inglaterra.
O empreendimento é composto de três túneis: dois são ferroviários, por onde passam os trens de alta velocidade da operadora Eurostar, utilizados para transporte de passageiros, além dos trens que carregam veículos e cargas; e o terceiro é de serviço, menor, que fica no meio.
O Eurotúnel diminuiu de forma significativa o tempo de viagem entre Inglaterra e França. Antes de sua construção, para ir de Londres a Paris era preciso percorrer um trajeto de cerca de seis horas de trem e de balsa. Agora, é possível fazer a mesma rota em duas horas e meia somente de trem —a travessia do canal da Mancha é feita em 35 minutos. Todos os anos, 25% do comércio entre Reino Unido e Europa continental passam pelo túnel, segundo o Grupo Getlink, que administra o empreendimento.
Para o engenheiro civil e geotécnico Ricardo Mirisola, especialista em projetos de pontes e grandes estruturas, o Eurotúnel foi um marco da engenharia moderna. “A obra foi considerada impossível por séculos. Ainda é uma referência do que se pode fazer.”
Segundo Mirisola, a tecnologia do popular tatuzão, como é chamado o equipamento que perfura túneis do metrô em São Paulo, é um legado das tuneladoras utilizadas para a construção do Eurotúnel. “Antes os metrôs eram feitos com valas a céu aberto.”
No caso da estrutura na Europa, ele afirma que foram necessários 20 anos de investigação geológica, e o trajeto foi definido entre rochas calcárias, mais porosas e fáceis de escavar, porém resistentes o suficiente para que fossem feitas as contenções. A profundidade máxima do túnel é de 75 metros.
E por que construir um túnel em vez de uma ponte? De acordo com Mirisola, no longo prazo o custo-benefício do empreendimento subaquático é maior. “O trem de alta velocidade em uma ponte estaria sujeito a vendavais, tempestades e não teria o mesmo desempenho. O custo de manutenção da ponte também seria muito maior”, diz.
Se o Eurotúnel conectou o Reino Unido à Europa continental, teve papel indireto no sentido contrário. A chegada de migrantes em situação irregular à ilha, muitos arriscando-se em travessias clandestinas pelos túneis, foi um dos fatores que impulsionaram o brexit, a saída britânica da União Europeia.
Com a entrada da medida em vigor, em 2017, as aduanas de ambos os lados mudaram os processos de fiscalização, e filas para o embarque começaram a ser registradas. Ainda assim, o aumento da burocracia não chegou a provocar impactos significativos sobre o número de passageiros no Eurotúnel.
Em 2023, 10,7 milhões de pessoas viajaram em trens da Eurostar, número superior aos 10,3 milhões registrados em 2017. “Simbolicamente, o brexit foi o contrário do que representou o Eurotúnel há 30 anos”, afirma Vieira, da Faap.