Nas semanas que se seguiram aos ataques do 11 de setembro de 2001, esta colunista escreveu várias tolices, no exercício de prever o que ia mudar nos Estados Unidos, em política e cultura. Uma previsão que não fiz foi sobre a capacidade do país de se atacar sem ajuda de terroristas externos.
Não pude prever uma nação dentro da nação, habitada por zumbis que caminham sonâmbulos para as urnas, em 2024, dispostos a destruir 234 anos de imperfeita democracia constitucional.
O pré-candidato Donald Trump tem anunciado sem eufemismos, nos comícios, seus planos para uma segunda Presidência da qual os EUA dificilmente poderiam se recuperar. E não há consolo nos sinais de demência cada vez mais frequentes em discursos em fala pastosa que fariam Fidel Castro parecer um orador sucinto.
Não há sinais de demência no entorno de Trump, uma tropa de camisas marrons pronta para assaltar todos os cantos institucionais do país. O homem que normalizou a transição dos republicanos de partido para família do crime organizado tem ao menos uma qualidade para a qual a escritora Maya Angelou alertou e que se tornou um adágio popular: “Quando as pessoas dizem quem elas são, acredite nelas da primeira vez.”
Notoriamente privado de senso de humor, Trump não seria capaz de formular de forma irônica sua estratégia de terra arrasada. Mas a morte lenta da ironia não se manifesta apenas na mansão em estilo cafona medonho de Mar-a-Lago.
A milhares de quilômetros, na costa do oceano Pacífico, um malfeitor muitos bilhões mais rico faz sua parte para enterrar a ironia num terreno de 5, 6 milhões de metros quadrados. Mark Zuckerberg, o fundador e dono da Meta, está construindo um bunker subterrâneo secreto na ilha havaiana de Kauai, para sobreviver ao fim do mundo com a mulher e os filhos.
O mesmo Mark Zuckerberg que colocou a sua plataforma Facebook a serviço da vitoriosa estratégia da campanha de Trump em 2016. O Mark Zuckerberg que permitiu, na sua rede social, que agentes russos convocassem protestos raciais naquele ano, posando como militantes americanos para criar tensão social nos meses anteriores à eleição presidencial. Ou seja, o mesmo canalha que contribuiu para um apocalipse possível.
É inevitável agora a inserção da Suprema Corte dos EUA na já assustadora campanha presidencial, depois da decisão da Suprema Corte do Colorado de barrar a candidatura de Trump no estado, por ter participado da insurreição do 6 de Janeiro.
Não vou arriscar mais previsões furadas, mas, não importa a dominância dos juízes de ultradireita, reforçada com indicações de Trump, barrar a candidatura num estado provocaria um efeito cascata nos outros 49 estados americanos. O fato de que o caso vai parar na corte máxima confirma décadas de erosão do equilíbrio de poderes nos Estados Unidos. Numa democracia saudável, um homem que instiga um golpe de Estado e enfrenta dezenas de acusações criminais seria inelegível.
O país fecha o ano como um dos mais improdutivos na Câmara que, sob o controle de republicanos, em vez de passar leis, parasitam como uma bancada de bolsonaros. O poder perfeitamente legal de comprar lealdade política nos EUA e o custo astronômico de fazer campanhas atraem para o Legislativo contingentes de políticos desinteressados em legislar. Problemas que deviam ser resolvidos no Congresso vão parar nos tribunais, num ciclo vicioso que, mais do que nunca, revela-se insustentável.
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