Um dos momentos mais memoráveis de Kamala Harris durante o ciclo eleitoral de 2020 foi quando, durante um debate das primárias democratas, ela criticou veementemente Joe Biden por trabalhar com segregacionistas no Senado em sua oposição compartilhada ao transporte escolar.
Ela personalizou sua crítica, dizendo: “Havia uma menininha na Califórnia que fazia parte da segunda turma a integrar as escolas públicas, e ela era transportada para a escola todos os dias. E aquela menininha era eu.”
O poder do ataque não estava apenas no ponto sendo feito, mas no fato de que era ela —uma pessoa afetada de um grupo afetado— a fazê-lo. Embora alguns defensores de Biden tenham visto seu comentário como um ataque gratuito, havia autenticidade na forma como ela confrontou a questão.
O golpe verbal também se alinhou com o espírito nacional em um momento em que os apelos por justiça racial e o movimento Black Lives Matter estavam em ascensão. Ela subiu nas pesquisas, e as doações entraram. No final, sua candidatura não decolou, mas meses depois Biden fez uma oferta histórica a Kamala para se juntar à sua chapa, levando-a a se tornar a primeira mulher, primeira pessoa negra e primeira americana de ascendência asiática a ser vice-presidente.
Avançando para o presente, quando Kamala serviu quase um mandato completo ao lado de Biden, ela está entrando em outro momento em que as estrelas políticas estão alinhadas para ela como a mensageira perfeita sobre um assunto que tem fixado a atenção dos americanos e é central na campanha presidencial de 2024: direitos reprodutivos.
Desta vez, seu alvo é Donald Trump. E estar em posição de ir para o ataque é algo como uma mudança na sorte para uma vice-presidente que suportou ataques severos, muitas vezes injustos, e que lutou para se definir no cargo.
Em outubro, Elaina Plott Calabro, da The Atlantic, perfilou a vice-presidente sob o título “O Problema Kamala Harris”, escrevendo que “a reputação de Kamala nunca se recuperou completamente” de alguns erros iniciais durante seu mandato. O artigo inclui uma citação particularmente direta do ex-conselheiro da administração Barack Obama, David Axelrod, sobre uma percepção de aversão ao risco nascida da insegurança: “Parecia que ela não sabia onde firmar os pés. Que ela não estava bem fundamentada, que ela não sabia exatamente quem era.”
As críticas a Kamala têm sido implacáveis, variando de desafios legítimos às suas declarações políticas a comentários ridículos sobre sua risada. Muito disso pareceu tingido de preconceito de gênero. Isso tudo a levou a passar sufoco nas pesquisas. Sua taxa de aprovação, assim como a de Biden, tem ficado abaixo de 50% durante a maior parte do mandato.
E ela permanece uma fonte de preocupação, uma vulnerabilidade percebida para a reeleição de Biden. Em março, a colunista do Washington Post, Kathleen Parker, escreveu que Kamala deveria se retirar pelo bem do país, comparando absurdamente ela a Sarah Palin em 2008.
Vez após vez em sua fracassada corrida pela indicação republicana deste ano, Nikki Haley apontou para a possibilidade de uma futura Presidência de Kamala como uma tática de assustar, dizendo em uma entrevista em agosto no Good Morning America: “Não há como Joe Biden terminar seu mandato. Acho que Kamala Harris será a próxima presidente, e isso deveria causar calafrios em todos os americanos.”
Mas a revogação de Roe vs. Wade [a decisão judicial que garantia o acesso ao procedimento em âmbito federal] pela Suprema Corte e a luxúria dos republicanos em promulgar políticas cada vez mais regressivas para restringir os direitos reprodutivos em estados de todo o país tornaram a voz de Kamala essencial na campanha.
Em dezembro, ela anunciou sua turnê nacional Luta pelos Direitos Reprodutivos. Em março, tornou-se o que se acredita ser a primeira vice-presidente a fazer uma visita oficial a uma clínica de aborto (nenhum presidente fez isso), quando visitou uma clínica da Planned Parenthood [ONG com foco em saúde reprodutiva] em St. Paul, em Minnesota.
Não importa o quão sensíveis e informados os homens tentem ser sobre a questão dos direitos reprodutivos, ainda há coisas com as quais não podemos nos conectar completamente. Kamala transcende essa barreira não apenas porque é mulher, mas também por sua experiência como promotora.
Em um discurso em fevereiro em Savannah, na Geórgia, ela disse que decidiu se especializar em lidar com crimes de violência contra mulheres e crianças porque, no ensino médio, descobriu que uma de suas melhores amigas estava sendo molestada pelo padrasto. Kamala contou essa história como uma forma de destacar a natureza repressiva das leis de aborto que não têm exceções para estupro ou incesto.
Ela disse à multidão: “A ideia de que alguém que sobrevive a um crime de violência, uma violação ao seu corpo, seria então informado de que não tem autoridade para decidir o que acontece com seu corpo em seguida, isso é imoral.”
Kamala pode nunca ser devidamente reconhecida por suas contribuições para a administração em uma ampla gama de questões, mas no final, isso pode não ser sua vocação. De acordo com seu gabinete, desde que Roe vs. Wade foi revogada, a vice-presidente realizou “mais de 80 reuniões em 20 estados”.
Ser uma voz confiável a favor dos direitos reprodutivos e contra os republicanos determinados a restringi-los ou eliminá-los pode ser a maior contribuição que ela pode fazer para a campanha de reeleição de Biden e para manter a estabilidade nacional.
Com essa questão, ela encontrou seu caminho. Com isso, o debate sobre ela como um fator de risco foi silenciado, para alguns, pela clara percepção do que ela traz para a campanha. Com isso, Kamala tem uma missão, e ela está comprometida com isso.
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