Em fevereiro de 2023, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, alterou as regras de Washington para interromper as entregas de armas a militares de outros países que ferem civis durante a guerra.
O democrata afirmou que, segundo a nova política, países que fossem “mais propensos” a violar o direito internacional ou os direitos humanos com armas dos EUA não deveriam recebê-las. Antes, os funcionários eram obrigados a demonstrar “conhecimento real” de tais violações, um critério mais rigoroso.
Alguns meses depois, em agosto, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, emitiu uma diretiva instruindo os funcionários do seu departamento no exterior a investigar eventuais danos a civis causados por militares estrangeiros com armas dos EUA e recomendar respostas que poderiam incluir a interrupção das entregas de armamento.
Dois meses depois, o Hamas atacou Israel, desencadeando a guerra na Faixa de Gaza e mergulhando Biden e Blinken em um intenso debate sobre como Israel está usando armas dos EUA. Para os críticos do presidente, a recusa em limitar as entregas de armas a Israel vai contra essas iniciativas e mina o objetivo de posicionar os EUA como um protetor de civis em tempos de guerra.
Suas políticas enfrentam novos testes esta semana. Israel ameaça uma invasão total de Rafah, uma cidade no sul de Gaza, a despeito da oposição de Biden. Além disso, o governo planeja entregar um relatório ao Congresso avaliando as garantias que Israel deu de que usou as armas dos EUA de acordo com a lei americana e internacional.
Se o relatório concluir que Tel Aviv violou a lei, Biden poderia restringir as entregas de armas. Na semana passada, 88 democratas da Câmara escreveram ao presidente questionando a credibilidade das garantias de Israel e pedindo “medidas concebíveis para evitar mais catástrofes humanitárias em Gaza”.
No ano passado, quando o governo lançou essa iniciativa —a Política de Transferência de Armas Convencionais da Casa Branca e o Guia de Resposta a Incidentes de Danos Civis do Departamento de Estado—, os funcionários a descreveram como parte de um novo esforço em relação aos direitos humanos na política externa dos EUA, uma melhoria nessa esfera em relação à administração do ex-presidente Donald Trump.
“Em partes, isso aconteceu para diferenciar o papel dos EUA no mundo sob Biden após Trump”, diz Sarah Margon, diretora de política externa da Open Society Foundations.
Na época, pessoas familiarizadas com as deliberações disseram que o governo estava focado em outros países. Um deles era a Arábia Saudita, cuja campanha militar armada pelos EUA no Iêmen havia matado milhares de civis e contribuído para um pesadelo humanitário.
Em um de seus primeiros atos como presidente, em fevereiro de 2021, Biden chegou a interromper a entrega de armas aos sauditas, que estão combatendo os militantes houthis apoiados pelo Irã no Iêmen. “Essa guerra precisa acabar”, disse ele. Desde então, porém, ele retomou as entregas.
Em meses, o ataque liderado pelo Hamas provocaria uma guerra que atraiu enorme atenção para a dependência de Israel dos US$ 3,8 bilhões em ajuda militar enviados anualmente pelos EUA —um pacote que inclui bombas e munições usadas em Gaza.
Críticos dizem que Biden está tomando uma decisão política ao desobedecer as diretrizes de sua própria administração no caso de Israel.
“Na prática, pode ser uma decisão política da Casa Branca —mas não é assim que deveria funcionar”, diz Brian Finucane, um assessor sênior do International Crisis Group que passou uma década como conselheiro jurídico do Departamento de Estado, até 2021. “A lei dos EUA deve ser aplicada. Se o resultado é algo de que você não gosta, azar.”
Essa lei teve origem na década de 1970, quando a preocupação com abusos de direitos humanos por alguns aliados dos EUA na Guerra Fria estava aumentando e membros do Congresso se irritavam com os governos de Richard Nixon e Gerald Ford pela falta de aviso prévio para armar países do Oriente Médio.
O senador democrata Hubert Humphrey, de Minnesota, liderava a insatisfação. Em 1976, ele reclamou que o povo americano “tinha se preocupado justificadamente com uma política nacional altamente secreta que parece ignorar nossos interesses de segurança de longo prazo em um mundo estável e mais democrático”.
Humphrey conseguiu aprovar uma legislação declarando que os EUA não poderiam enviar assistência militar a nenhum governo estrangeiro que “se envolvesse em um padrão consistente de violações graves dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente”. O Congresso definiu essas violações para incluir “tortura, tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante”, detenção arbitrária e “outras negações flagrantes do direito à vida, liberdade ou segurança da pessoa”.
Especialistas interpretaram que a última cláusula inclui bombardeios indiscriminados ou baixas civis desproporcionais, por exemplo. Um relatório de 2017 da American Bar Association focado nas vendas de armas dos EUA para a Arábia Saudita concluiu que “violações graves do direito humanitário internacional resultando na perda de vidas civis” se qualificariam.
O direito internacional humanitário geralmente se baseia nas Convenções de Genebra e em outros acordos internacionais que pedem a proteção de civis em guerra e proíbem ataques a instalações e pessoal médico.
O relatório da administração desta semana é resultado da pressão crescente dos democratas no Congresso. Em fevereiro, o senador Chris Van Hollen elaborou uma legislação invocando uma lei de 1995 que proíbe a ajuda dos EUA a qualquer país que bloqueie a entrega de ajuda humanitária americana. Muitos grupos de ajuda e especialistas legais acusam Israel de obstruir intencionalmente suprimentos humanitários para Gaza, incluindo ajuda fornecida pelos EUA; Israel culpa o Hamas e questões logísticas.
À medida que a emenda de Van Hollen começou a reunir apoio entre os democratas, a Casa Branca moveu-se para cooptar o esforço. A iniciativa de Van Hollen “provavelmente não teria sucesso, mas causaria constrangimento para a administração”, disse John Ramming Chappell, um pesquisador do Center for Civilians in Conflict.
Trabalhando com o senador, a Casa Branca redigiu um memorando de segurança nacional semelhante à sua medida no Senado. Ele incluía um requisito de que todos os destinatários de ajuda militar dos EUA fornecessem “garantias” por escrito de que haviam cumprido a legislação nacional e internacional aplicável ao usar armas dos EUA. Israel, o claro motivo da medida, não foi mencionado nominalmente.
Tel Aviv enviou suas garantias ao Departamento de Estado no final de março. Blinken está supervisionando a entrega do relatório ao Congresso avaliando “quaisquer relatos ou alegações críveis” de que armas dos EUA foram usadas para violar a lei, e se o país em questão “buscou responsabilização apropriada”.
O relatório também deve dizer se o país “cooperou plenamente” com os esforços dos EUA para fornecer ajuda humanitária a uma área de conflito onde usou armas dos EUA.
“Isso será um teste para a credibilidade da administração e mostrará se o governo está disposto a enfrentar algumas verdades inconvenientes”, diz Van Hollen. “Este relatório deve ser impulsionado por fatos concretos e pela lei.”