Menos de duas semanas após o início da Guerra no Iraque, em 2003, o filósofo político Antonio Negri definiu a iniciativa americana como um “golpe de Estado”, uma vez que os EUA decidiram ir à guerra sem o aval da ONU.
Em entrevista à Folha naquele mesmo ano, Negri, que morreu na última sexta-feira (15), aos 90, afirmava que o Iraque era um “pretexto para confrontar a Europa”. À época, o professor e pesquisador lançava o livro “Império”, escrito em parceira com Michael Hardt. A obra se tornou uma espécie de “bíblia” para contestar a ordem mundial do momento.
Relembre a entrevista concedida a Roberto Dias, então correspondente em Nova York e atual secretário de Redação da Folha.
Em “Império”, o sr. diz que a legitimação da ordem imperial não se baseia apenas na força militar, mas também na produção de normas jurídicas internacionais duradouras. Com o que ocorreu na ONU, o que será dessa legitimação?
Este foi evidentemente um golpe de Estado contra as outras forças que fazem parte, de forma multilateral, deste império. O poder monárquico dos EUA se opôs às posições dos outros países do mundo.
Seu livro é de 2000, e creio que o sr. já fez reflexões sobre como os atentados terroristas, a doutrina Bush e esta guerra no Iraque se encaixam em sua teoria. Como seria essa continuação?
O problema fundamental hoje é considerar que a guerra, como está estabelecida pela potência americana, não só não é legítima, mas também não é suficiente para erguer uma ordem mundial.
Os EUA não podem pagar a guerra. Não há consenso internacional para ela. Os EUA estão se movendo fora da legitimidade imperial. E, com toda a probabilidade, movem-se também fora de sua Constituição.
O sr. também fala da importância da razão para o império. Os EUA a perderam?
Não creio que se possa dizer se os EUA têm ou não razão, porque não são um animal. O que se tem hoje é um grupo que não representa os Estados Unidos.
Representa, sobretudo, os interesses de alguns setores poderosos. A questão fundamental não creio que seja americanismo ou antiamericanismo.
O problema é que há um grupo nos EUA que talvez nem seja legal, por causa do que aconteceu nas eleições. Pode-se chamar esse grupo de usurpador.
Para o império, Bush está mais próximo de ser um Nero ou um Augusto?
Não sei dizer.
Mas qual será o posto de Bush na história americana, em que patamar ele estará em relação aos outros presidentes?
Há uma veia que o vê como um jacksoniano [a teoria jacksoniana diz que o objetivo principal da política externa de Washington deve ser a segurança dos americanos”.
Não creio que se trate disso. Penso que ele não está na linha de Jackson. Acho que ele será apenas uma exceção negativa.
Se a concepção imperial necessita de espaço, como o sr. diz, o que devemos esperar agora? Depois de Bagdá, viria Pyongyang?
Será o Irã, creio eu. Quer dizer, isso é o que vem dos Estados Unidos, eu vivo na província.
E a Coreia do Norte estaria a seguir?
Acho que será a China, mas daqui a algum tempo. Na verdade, a Coreia do Norte é um pretexto para a China, assim como o Iraque é um pretexto para confrontar a Europa. E o Irã será um pretexto para a Rússia. Esse é o jogo que está se fazendo agora.
Immanuel Wallerstein diz que o império americano é decadente, que a economia está fraca e que Washington está isolado. O que o sr. pensa?
Sou prudente em relação a isso. Talvez haja a decadência desse império de Bush, mas, para os EUA, acho que ainda é uma primavera.
O que será dos EUA e do Império daqui a dois anos?
Acho que será importante que a Europa e a América Latina sigam fortes contra a vontade de Bush. Espero que os EUA possam se livrar de Bush. É a esperança que eles podem dar ao mundo agora.