Já se passou mais de um ano desde a manhã de agosto em que uma minivan que vinha na contramão colidiu com um ônibus escolar nos arredores de Springfield, no sudoeste do estado de Ohio, num acidente que deixou um menino de 11 anos morto e outras 23 crianças feridas.
O motorista da minivan era um dos milhares de imigrantes do Haiti que haviam se mudado recentemente para a área. Ele estava dirigindo com uma carteira de motorista estrangeira, inválida em Ohio.
O palco estava armado para mais um capítulo do conturbado debate sobre imigração nos Estados Unidos —amplificado pelo fato de que J.D. Vance, senador pelo estado, tornou-se recentemente o candidato a vice-presidente do Partido Republicano.
Em um discurso na Conferência Nacional Conservadora, em julho, Vance descreveu Springfield como uma cidade quase idêntica a Middletown, Ohio, onde ele cresceu, exceto pelo fato de que agora estava abarrotada de haitianos.
Autoridades municipais estimam que até 20 mil migrantes oriundos do país vivem em Springfield. A maioria se mudou para lá depois da pandemia.
Muitos relatos de moradores locais indicam que eles têm sido fundamentais para revitalizar a cidade que, como muitas outras do Meio-Oeste americano, tinha vivenciado um grande declínio ao longo das últimas décadas, com sua população indo de 80 mil pessoas em 1960 para menos de 60 mil em 2014.
Em meados dos anos 2010, Springfield elaborou um plano estratégico para atrair empresas, chamando a atenção para a sua localização, entre Columbus e Dayton, com fácil acesso a duas rodovias interestaduais, e criando programas para treinar força de trabalho.
Em 2020, o município já tinha atraído uma montadora de automóveis, empresas de serviços de alimentos e de logística e uma fabricante de chips, entre outras, criando cerca de 8.000 novos empregos.
Mas logo a mão de obra disponível passou a não dar conta dessas vagas. Muitos jovens em idade produtiva tinham sucumbido ao vício. Outros evitavam trabalhos com tarefas repetitivas e que não exigiam especializações.
Haitianos radicados nos EUA ouviram falar que Springfield oferecia empregos com boa remuneração no setor fabril e tinha um baixo custo de vida e chegaram em massa à cidade.
Os empregadores, por sua vez, estavam ansiosos para treiná-los. Os haitianos tinham documentos e autorização para trabalhar graças a um programa federal que oferecia proteção temporária a eles nos EUA. Alguns já viviam há anos em lugares como a Flórida, onde a comunidade haitiana vem crescendo cada vez mais.
Mas a rapidez com que os haitianos se estabeleceram no município em Ohio e o volume de suas chegadas pressionaram setores municipais como moradia, educação e saúde.
No centro de saúde comunitário Rocking Horse, uma clínica subsidiada pelo governo federal que não recusa atendimento a ninguém, por exemplo, o influxo de haitianos fez com que consultas que costumavam durar 15 minutos passassem a durar até 45 minutos em razão da barreira linguística.
A clínica comunitária viu um aumento de 13 vezes no número de pacientes haitianos entre 2021 e 2023, de 115 para 1.500, o que sobrecarregou seus empregados e seu orçamento.
“Perdemos produtividade. Os funcionários tiveram um grande desgaste”, disse a diretora do local, Yamini Teegala. Seis falantes de crioulo haitiano foram contratados e treinados para ajudar os recém-chegados. Mas os gastos com esses serviços de tradução aumentaram para cerca de US$ 436 mil este ano, em comparação com US$ 43 mil em 2020, disse ela.
Com muitas outras cidades, Springfield também enfrenta uma escassez de moradias acessíveis para famílias de baixa renda, e o influxo de haitianos não tem ajudado nesse sentido.
Em 8 de julho, Bryan Heck, secretário municipal de Administração, citou esse influxo em uma carta a um grupo de trabalho do Senado em que pedia ajuda financeira do governo federal. Ele copiou Vance.
No dia seguinte, em uma reunião do grupo, Vance questionou o presidente da Reserva Federal, Jerome Powell, sobre a relação entre “os altos níveis de imigração ilegal sob o governo [Joe] Biden” e o aumento dos custos de moradia.
O candidato a vice fez inclusive uma referência a Springfield, dizendo que a cidade é “um exemplo muito real dessa preocupação”.
O acidente de 22 de agosto desencadeou um ressentimento entre habitantes locais que, segundo muitos, já estava se formando há meses. Desde então, a hostilidade contra os haitianos só aumentou, com diversos moradores se referindo à vinda deles como “uma “invasão” —termo que se tornou um chavão da retórica anti-imigração da direita.
O menino que morreu, Aiden Clark, era filho de professores. Ele foi arremessado para fora do ônibus durante o acidente, e o veículo em seguida tombou em cima dele. Clark foi declarado morto no local.
O motorista da minivan, Hermanio Joseph, 36, vivia em Springfield há mais de um ano e trabalhava em um armazém. A esposa e os quatro filhos dele vivem no Haiti.
O advogado de Joseph afirmou durante o julgamento dele, em abril, que o sol o tinha cegado. Ele foi condenado por homicídio culposo (não intencional) e pode passar nove anos na prisão.