Em um mundo cada vez mais autocrático, líderes com tendências autoritárias distorcem a definição de democracia para obter ganhos políticos. E uma vez que o conceito é fragilizado, mesmo os sistemas representativos de longa data ficam sob risco, algo que ocorre em países como Estados Unidos e Índia.
A constatação apareceu em estudo publicado nesta quinta-feira (17) pela revista Science e coordenado pela Universidade de Oxford (Reino Unido), Universidade Emory (Estados Unidos) e Universidade Nacional de Singapura. Os pesquisadores entrevistaram 6.000 pessoas nos EUA, Itália, Egito, Índia, Tailândia e Japão para investigar como cidadãos ao redor do mundo entendem o conceito de democracia.
Dois fatores foram apontados como primordiais para que uma sociedade seja considerada democrática: eleições competitivas e fortes proteções às liberdades civis. A escolha desses elementos foi consistente independentemente da idade, gênero, educação, status de minoria ou ideologia política dos entrevistados.
“Quase todas as pessoas do mundo dizem valorizar a democracia, mas seu significado tem sido debatido e contestado na esfera pública de forma constante”, afirma à Folha Scott Williamson, professor do Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade de Oxford e coautor do estudo.
“Líderes que não gostam de pleitos livres e justos por vezes tentam convencer os cidadãos de que a democracia não se trata de eleições, mas de um sistema no qual eles consigam elaborar políticas que satisfaçam o povo”, acrescenta ele, que aponta uma série de retrocessos democráticos na última década.
Segundo o professor, a Hungria, do premiê Viktor Orbán, e a Turquia, do presidente Recep Tayyip Erdogan, são exemplos de países que fizeram uma “transição de sistemas políticos democráticos para autoritários” nos últimos anos. O primeiro está em seu quinto mandato e acumula divergências por seu projeto de “democracia iliberal”, com medidas anti-imigração, anti-LGBTQIA+ e contra a liberdade de imprensa.
Já o líder turco está há mais de 20 anos no poder e, tal qual o húngaro, é acusado de erodir a independência do Judiciário, correr a liberdade de imprensa e enfraquecer os direitos humanos no país.
No caso de regimes antidemocráticos consolidados, o que inclui a China, ficam ainda mais evidentes os esforços para promover “entendimentos alternativos da democracia” como forma de “mudar os padrões a seu favor”, diz Williamson. O país é comandado pelo Partido Comunista, que não tolera dissidências.
“Se [líderes políticos] conseguirem persuadir as pessoas de que o significado da democracia reflete seu próprio modelo de governança, eles podem usar o apoio popular à democracia para melhorar as percepções de seu próprio poder autocrático”, diz o professor ao justificar a importância do estudo.
Depois de eleições competitivas e proteções às liberdades civis, os dois atributos mais importantes para que uma sociedade seja considerada democrática foram igualdade de gênero e igualdade econômica.
Os entrevistados também apontam que nações nos quais os líderes respeitam a autoridade do Legislativo e dos tribunais são mais propensos a serem democráticos. Nesse sentido, diz Williamson, a percepção sobre a democracia americana poderá sofrer impactos com o pleito marcado para novembro. Donald Trump, o candidato republicano, afirmou que aceitará o resultado somente “se a eleição for livre e justa”.
“Trump já tentou impedir a transferência pacífica de poder após perder a eleição de 2020. Desde então, ele vem afirmando que reprimiria seus oponentes políticos caso vença a disputa. Também ameaça buscar punições legais contra veículos de imprensa críticos. E não vejo motivo para acreditar que ele aceitará uma derrota na eleição”, diz Williamson. Ele acredita que a democracia americana corre riscos.
Já o Brasil, afirma, “parece ter sido muito mais eficaz” do que os EUA em punir ações antidemocráticas do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus apoiadores, uma referência ao 8 de Janeiro.
Finalmente, os entrevistados se mostraram mais propensos a considerar países nos quais se podem votar diretamente em políticas, seja em plebiscitos ou referendos, como mais democráticos. Essa “democracia direta”, porém, mostrou-se menos importante em comparação com outros fatores.
Os seis países foram escolhidos para a pesquisa por terem diferentes “regimes políticos, histórias democráticas, regiões geográficas, níveis de desenvolvimento e origens culturais”.
Em 2022, 7 em cada 10 pessoas (5,7 bilhões) viviam sob regimes políticos considerados não plenamente democráticos, de acordo com a ONU. Relatório do instituto V-Dem divulgado no ano passado, por sua vez, apontou recorde de autocratização, sistema no qual uma nação erode pilares cruciais da democracia, como alternância de poder, liberdades de expressão e de imprensa e pleitos competitivos.
No estudo divulgado desta quinta, os pesquisadores apontam terem encontrado “poucas evidências de uma redefinição autoritária” da democracia. Mesmo em países autoritários como Egito ou Tailândia, o sistema representativo ainda é percebido como sendo fortalecido por eleições competitivas e liberdades.