Nem todas as perguntas de política deixadas sem resposta pela vaga campanha de Kamala Harris são igualmente importantes. Por exemplo, não é urgente saber como as opiniões dela sobre o sistema de saúde ideal mudaram desde os debates sobre o Medicare for All (atendimento médico para todos) em 2020, já que é provável que, como presidente, ela enfrente um Congresso republicano, o que impediria a aprovação de grandes reformas domésticas.
É muito mais importante, por outro lado, saber o que uma presidente Kamala faria em relação à Guerra da Ucrânia, a crise mais significativa que ela herdaria imediatamente, caso eleita.
Durante a visita de Volodimir Zelenski a Washington, Kamala reafirmou formalmente o apoio à posição do governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, desde o início da guerra: a Ucrânia deve recuperar a maior parte de seu território perdido.
Ao lado do líder ucraniano, a vice-presidente rejeitou qualquer negociação que envolva concessões territoriais, classificando essas ideias de favoráveis ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, e de “propostas de rendição”. O contraste com Donald Trump é evidente, já que o republicano promete buscar um armistício imediato, mas sem fornecer detalhes sobre os termos.
Enquanto Kamala fazia sua declaração de apoio, o governo vazava dúvidas sobre o suposto plano de vitória de Zelenski, descrevendo-o como “pouco mais que um pedido repaginado por mais armas e o levantamento de restrições sobre mísseis de longo alcance”, segundo o The Wall Street Journal. Em outras palavras, é um pedido de ajuda para desacelerar o ritmo de avanço dos ganhos russos, mas não um plano para realmente entregar o desfecho vitorioso que Kiev e Washington oficialmente têm buscado.
Em justiça a Zelenski, não está claro como um plano concreto poderia ser implementado sem a intervenção direta da Otan, algo que a Casa Branca de Biden tem evitado cautelosamente. Nos últimos meses, a situação no front se deteriorou para a Ucrânia, e a principal preocupação agora é até que ponto as condições podem piorar.
A revista The Economist oferece uma avaliação profundamente pessimista, destacando as vantagens russas em número de tropas, poder de fogo e recursos financeiros.
Cathy Young, escrevendo para o The Bulwark, tem uma visão mais otimista, argumentando que o atual avanço russo pode atingir seus limites em breve, que Moscou pode estar esperando “tomar o máximo de terra que puder até o fim do ano, na esperança de obter um acordo de cessar-fogo que congele o status quo territorial”.
Mas ambas as leituras convergem para a realidade de que, por enquanto, o principal objetivo da Ucrânia é estabilizar a linha de frente, e a esperança de um recuo russo rápido que muitos nutriram em 2022 e 2023 se dissipou.
Essa situação cria duas incertezas sobre o que uma eventual administração Kamala Harris poderia decidir. A primeira questão é quanto tempo os EUA continuarão a apoiar um “plano de vitória” que, de fato, não existe. Outra é até que ponto o apelo de Trump por negociações pode se tornar o caminho mais provável para a política externa dos EUA, independentemente de quem vença as eleições de novembro.
Além disso, há dúvidas sobre se tanto o governo Biden quanto Kamala estão apenas aguardando que a Ucrânia mantenha suas posições até as eleições, momento em que a postura de rejeição a negociações pode se tornar mais flexível.
As questões de longo prazo giram em torno do papel ucraniano na estratégia global dos EUA, que enfrenta atualmente vários pontos de tensão perigosos.
A esperança inicial de que a Guerra da Ucrânia pudesse neutralizar um dos principais adversários dos americanos parece ilusória: a Rússia resistiu às sanções econômicas e, por enquanto, parece estar se fortalecendo com uma economia de guerra fortemente ligada a outro grande rival dos EUA, a China.
Essa aliança sino-russa é uma peça central de um cenário global que, segundo um recente relatório bipartidário da Comissão sobre a Estratégia Nacional de Defesa, representa “o mais sério e desafiador” quadro que os EUA enfrentam desde 1945, tanto em termos de nossas vulnerabilidades quanto no “potencial de um grande conflito a curto prazo” com os principais adversários dos americanos.
Pode haver algum exagero nessa avaliação, mas certamente este é o momento mais tenso para o poder dos EUA desde o fim da Guerra Fria, com desafios em uma escala que exige uma rearmamentação substancial, um recuo significativo ou alguma combinação dos dois.
E a Casa Branca atual tem lutado com esse equilíbrio, primeiro recuando caoticamente no Afeganistão e, em seguida, respondendo a novas crises reafirmando as promessas dos EUA —mas sem um plano claro para tornar esses compromissos sustentáveis, para combinar a retórica americana com uma força subjacente.
A Ucrânia nesse contexto não é apenas um grande problema estratégico em si, mas um ponto de decisão entre muitos, do Oriente Médio ao leste e nordeste Asiático, que testarão a capacidade do próximo presidente dos EUA de definir prioridades, recalibrar compromissos e combinar os objetivos americanos expansivos com seus meios mais limitados.
Kamala tem uma visão diferente do presidente atual sobre como defender a Pax Americana? Ela tem alguma visão específica? Nenhuma das perguntas não respondidas sobre sua candidatura provavelmente importará mais,ou terá respostas que custem mais se o mundo não cooperar.
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