Este 25 de abril assinala 50 anos da “Revolução dos Cravos” em Portugal, o levante militar e popular pacífico que marcou o início da democracia no país. Este evento histórico possui conexões diretas com os esforços da ONU para assegurar o princípio da autodeterminação dos povos nas ex-colônias portuguesas.
Quando as Nações Unidas surgiram, quase um terço da população mundial vivia em territórios colonizados. Entre os anos 60 e 70, a ONU definiu a descolonização como uma prioridade na agenda política internacional. Muitos debates nas Nações Unidas tiveram como foco as colônias portuguesas na África e suas lutas de independência.
Na condição de ex-colônia, o Brasil reforçou a importância da descolonização em diversas Assembleias Gerais da ONU. Em 1967, por exemplo, o ministro José de Magalhães Pinto associou o fim da dominação com um princípio fundador da ONU.
“O Brasil reafirma sua adesão ao princípio da autodeterminação dos povos”
13 anos de conflitos armados
Três meses depois da “Revolução dos Cravos”, a Guiné-Bissau foi a primeira nação africana reconhecida como país independente de Portugal. Em 1975 foi a vez de Moçambique, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, este na Ásia.
Anteriormente, esses países vivenciaram até 13 anos de conflitos armados resultantes de movimentos de independência. Esse período foi marcado por 14 resoluções aprovadas na Assembleia-Geral da ONU e 10 no Conselho de Segurança abordando a situação nos territórios sob administração portuguesa.
Em 1960, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais, ressaltando “a necessidade de pôr fim rápido e incondicional ao colonialismo em todas as suas formas e manifestações”. Na mesma sessão, foi aprovada a resolução 1541 que, dentre outros pontos, listava os territórios sob domínio português que deveriam ser libertados.
Em resposta a “medidas repressivas” e uma “crueldade crescente” observada contra povos que estavam em busca de independência, a Assembleia Geral criou, em 1961, o Comitê Especial sobre Descolonização para monitorar a implementação da Declaração e fazer recomendações.
Abertura para o diálogo
Mesmo tendo sido convidado desde que o Comitê começou suas atividades em 1962, Portugal nunca participou das reuniões em que foram debatidas as situações das suas colônias. Isso só mudou a partir do levante de 25 de Abril de 1974.
O Comitê Especial sobre Descolonização realizou visitas a Guiné-Bissau em 1972 e Cabo Verde em 1974. Em junho de 1975, já no pós-revolução, ocorreu uma reunião histórica em Lisboa. Após muitos anos de confronto, o órgão da ONU e o Governo português definiram objetivos comuns sobre a questão da descolonização.
De Portugal, o então diplomata António Monteiro seguia as reuniões da ONU. Mais de 20 anos depois veio a ser ministro dos Negócios Estrangeiros. Ele revelou memórias de tensões nos países envolvidos e vínculos entre defensores da mudança.
“O 25 de abril não foi uma oferta das independências às ex-colônias. Foi uma abertura para um diálogo que os levasse a uma autodeterminação e independência com respeito pelos respectivos povos. Nem tudo correu bem. Recordo-me que Timor foi invadido. Angola começou imediatamente com uma guerra civil. Moçambique teve os seus problemas. A Guiné-Bissau já estava consolidada e tinha obtido um reconhecimento internacional aí na ONU. Mas nem tudo foi fácil, mas foi um caminho que fizemos, em conjunto, para uma realidade que é hoje muito viva: o entendimento muito forte entre Portugal e antigas colônias que foram palco de guerras injustas como aquelas que aconteceram no período dos 13 anos”.
Relação conflituosa que se transformou em cooperação
Um pouco antes da “Revolução dos Cravos”, no início dos anos 70, movimentos africanos de independência criaram maior proximidade com o Secretariado da ONU e seus representantes se mantiveram no centro da diplomacia global.
Para a Guiné-Bissau, o levante em Portugal acelerou o reconhecimento da independência. O ex-vice-diretor da Divisão da África Central e Austral do Departamento de Assuntos Políticos e de Consolidação da Paz da ONU e atual embaixador guineense nas Nações Unidas, Samba Sané, destacou como uma relação antes conflituosa se transformou em cooperação.
“Não obstante a guerra colonial ou luta de libertação, sempre os protagonistas que estiveram no lado certo da história tiveram presente a relação entre os povos. Isso facilitou a transição da independência para o restabelecimento da parceria de cooperação multilateral e bilateral. O futuro deve ser esse.”
Herança da colonização
No entanto, na visão da conselheira do secretário-geral da ONU para África, Cristina Duarte, é preciso promover uma autonomia que não foi assegurada após as independências. Segundo ela, as novas nações herdaram um legado que favoreceu “falhas na governança”.
“Que Estados, que administrações públicas é que os países africanos herdaram quando das independências? Um Estado que tinha, durante o período colonial, exercido duas funções, a função de ter um sistema judicial para manter o poder repressivo. A segunda era um estado cujas estruturas estavam desenhadas para extrair recursos e taxas. Este foi o Estado que os países africanos herdaram quando das independências.”
Nascida em Portugal, Cristina Duarte é filha de revolucionários cabo-verdianos e foi criada em Angola. Ela diz amar a diversidade lusófona desde o berço, seguida de uma adolescência marcada pelo 25 de abril onde foi treinada para carreira política. A conselheira diz que a “Revolução dos Cravos” foi somente o começo e serve até hoje de inspiração para uma nova missão.
As disputas na ONU
No entanto, ao longo dos anos 60, Portugal não considerava os territórios sob sua administração como colônias e sim como “províncias ultramarinas” e usava esta tese no que era considerada uma forma de rejeitar o diálogo multilateral sobre a autodeterminação dos povos.
Em 1963, o Conselho de Segurança adotou uma resolução que afirmava que a situação nos territórios sob administração portuguesa estava “perturbando gravemente a paz e a segurança na África”. O texto pedia a todos os Estados que se abstivessem de oferecer ao governo português qualquer assistência que permitisse “continuar a repressão dos povos dos territórios sob a sua administração”.
Nos anos seguintes, o Conselho de Segurança manifestou repetidamente o apoio à independência dos territórios sob domínio português e condenou a recusa de Portugal em implementar as determinações da ONU.
Perante os conflitos que ultrapassavam uma década, a resolução aprovada em 1972 apelou a Portugal por negociações para uma solução para o confronto armado que existia nos territórios de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Moçambique.
Após o 25 de abril de 1974, Portugal fez declarações na Assembleia Geral em setembro e outubro daquele ano, aceitando cumprir suas obrigações com o direito dos povos africanos à autodeterminação. O órgão deliberativo da ONU aprovou por unanimidade a resolução 3294 saudando a nova postura do governo português e a cooperação com a realização das independências no ano seguinte.
O texto afirmava que “a ação realizada em Portugal pelo movimento de 25 de Abril de 1974 representa um passo fundamental no processo de descolonização que ocorre nos territórios”.
A contribuição do Brasil
O Brasil desempenhou um papel importante nesses debates, defendendo a independência e autodeterminação dos territórios coloniais portugueses na África por meios pacíficos. O país também insistiu no diálogo de Portugal com a ONU.
Em seu discurso na Assembleia Geral de 1963, o Brasil afirmou que estava emergindo no seio das Nações Unidas uma articulação de “pequenas e médias potências que se unem, fora ou à margem das ideologias e das polarizações militares, numa luta continuada em torno de três temas fundamentais: Desarmamento, Desenvolvimento Econômico e Descolonização”.
Em 1974, o Brasil saudou a independência em Guiné-Bissau e declarou expectativa com as independências de Moçambique e Angola. Ao se classificar como “ex-colônia”, o Brasil disse que “oferecia a mão a seus irmãos africanos”.
Para Monteiro, houve um movimento complementar, pois o Brasil estimulou Portugal em relação a independência das colônias, mas a “Revolução dos Cravos”, por sua vez, acabou tendo um efeito na luta pela democratização brasileira.
“O Brasil foi sempre um apoiante dos novos países africanos. E mesmo na questão de Timor, em que eles conheciam pouco e ficaram um pouco afastados, procuraram depois corrigir e apoiar Portugal nos esforços que foram feitos sobretudo na ONU. A revolução criou um movimento no Brasil de grande respeito e de ansiedade de conhecer Portugal. Chico Buarque fez a canção famosa “tanto mar” que uniu Portugal e Brasil no que veio a contribuir para acabar com a ditadura militar no Brasil. E isso criou um ambiente ainda valido e que se vê na literatura, nas canções, em que há essa esperança de que aquilo que tenha acontecido em Portugal viesse a refletir-se também na democratização brasileira que veio depois a acontecer.”
Ação conjunta na paz e no desenvolvimento
A abertura ao diálogo que se deu a partir do 25 de abril de 1974 restabeleceu a relação de Portugal com a ONU e criou espaço para cooperação entre os países de língua portuguesa. Samba Sané ressalta que foi aproveitado o que havia em comum diante dos desafios no que foi o embrião de uma Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Cplp. Segundo ele, o bloco busca cada vez mais cooperar com a ONU, especialmente em temas de paz e segurança.
“Estando em diferentes regiões do mundo podemos coordenar para manter a presença da Cplp mais frequente nos órgãos das Nações Unidas. Moçambique está presente no Conselho de Segurança, vai acabar o seu mandato como membro não permanente em 2025. Sabemos que Portugal é candidato para 2027 e 2028. Guiné-Bissau é candidata também e já foi endossada pela sub-região da África Ocidental para o ano 2028-2029 como membro não permanente.”
Essa visão é compartilhada por Cristina Duarte, que adiciona a importância da cooperação no bloco para fomentar estratégias de desenvolvimento que superem o legado negativo da colonização.
“Eu acho que chegou o momento dos líderes dos países de expressão portuguesa, os Palop, de investirem, juntamente, e com seus parceiros estratégicos internacionais, mais na construção das instituições. Se não, não vai ser possível avançar. Cabo Verde é, neste momento, um país de rendimento médio, porque desde 1975 investiu no capital humano e entendeu a importância das instituições como ativos intangíveis na promoção do desenvolvimento. Eu acho que esta é a peça que às vezes sempre falta e que estamos em condições de ativar.”