Silêncios são raros na sede da Academia Barenboim-Said, escola de música erguida no antigo armazém de cenários e figurinos da Ópera de Berlim. Seja ao subir e descer as escadas no átrio ou percorrer os corredores da área em que os alunos têm aulas e ensaiam, uma melodia sempre escapa —o sopro de uma flauta, o vibrar da corda de um violoncelo.
Talvez por isso tenha sido tão forte a escolha de seus alunos, três quartos dos quais vêm do Oriente Médio e do Norte da África, por iniciar seu concerto do dia 23 de outubro com um minuto sem som algum.
Em folhetos distribuídos pouco antes da apresentação, os jovens diziam que aquele era “um momento muito difícil” para fazer música. Explicavam que, nas semanas anteriores, muitos deles tinham perdido pessoas próximas na guerra iniciada em Gaza semanas antes, fosse pelas mãos de terroristas do Hamas ou devido aos bombardeios de Israel à faixa palestina. Ao final, porém, decidiram “seguir os passos de seus fundadores” e tocar juntos.
Os fundadores em questão são o maestro Daniel Barenboim, judeu argentino-israelense, e o intelectual Edward Said, palestino-americano. Embora a academia só tenha aberto as portas em 2016, mais de uma década depois da morte de Said, ela tem origem na longa parceria iniciada pelos dois na virada do milênio.
À época, os dois amigos ministraram em Weimar, na Alemanha, uma aula para jovens músicos de países árabes e de Israel. A iniciativa foi tão bem-sucedida que foi repetida nos anos seguintes, até dar origem a uma orquestra —a West-Eastern Divan, cujo nome significa algo como um ponto de encontro entre Oriente e Ocidente— e a escolas de música em Andaluzia, na Espanha, e em Ramallah, na Cisjordânia.
A Academia Barenboim-Said, cujo auditório oval, todo revestido em madeira, teve seu projeto doado pelo cobiçado arquiteto Frank Gehry, seria a epítome desse projeto. Todos os anos, jovens de todo o mundo competem por bolsas para estudar música clássica na instituição. Além das aulas práticas e teóricas comuns a conservatórios, os alunos também têm aulas de história, filosofia e literatura, disciplinas que, juntas, correspondem a um quinto do currículo que oferece.
Hoje, a escola reúne cerca de 80 alunos de 27 nacionalidades diferentes. A lista inclui 17 israelenses e 6 palestinos, ainda que a administração ressalte que os números podem esconder a diversidade de seu corpo estudantil, que conta por exemplo israelenses não judeus e palestinos com passaportes israelenses.
De todo modo, não é à toa que a instituição tenha sido particularmente afetada pelo 7 de outubro, data de início de uma guerra que já matou pelo menos 1.200 israelenses e mais de 23 mil palestinos. Os números são, respectivamente, do governo de Israel e das autoridades de saúde de Gaza —estas, ligadas ao Hamas.
Os alunos têm se recusado a falar sobre a situação com a imprensa, alguns por medo de retaliação contra suas famílias. Diretora da academia, Regula Rapp diz, porém, que as discussões entre eles vêm crescendo e se tornando mais acaloradas desde o início dos enfrentamentos entre Israel e o Hamas. O próprio concerto do dia 23, regido por Barenboim em pessoa, por pouco não aconteceu.
“Houve ensaios durante toda a semana, e os alunos estavam bastante nervosos. Na segunda-feira, os palestinos disseram que não queriam tocar; no dia seguinte, os israelenses fizeram o mesmo”, ela conta. “Mas no final todos tocaram, e acredito que o simples fato de eles estarem aqui já é um sucesso por si só.”
Para lidar com esse contexto, a escola passou a oferecer serviços de aconselhamento e aumentou a frequência de encontros entre os jovens músicos e os membros do corpo docente. A pedido dos estudantes, também organizou aulas extras sobre a história do conflito israelo-palestino e o contexto sociológico em que ele se desenrola.
“Eles têm muito interesse em entender como lidar com esse conflito”, resume Rapp. É um esforço em certa medida inútil, uma vez que “a guerra é maior do que todos nós”, ela prossegue. “Mas sempre digo que a música também é maior do que todos nós.”
Trata-se da mesma crença que Barenboim e Said tinham ao fundar a West-Eastern Divan. A diretora explica que a teoria da dupla se baseia na ideia de que a complexidade harmônica da música clássica ocidental exige dos membros de uma orquestra uma escuta ativa para que toquem em harmonia. Colocar árabes e judeus para fazer música em conjunto representaria, portanto, um primeiro passo fundamental para estabelecer algum tipo de diálogo entre eles.
Rapp diz que essa abordagem conciliadora da academia tem atraído alguns políticos na Alemanha. A guerra no Oriente Médio vem se mostrando um tema sensível no país em razão da memória do Holocausto, e o temor de que manifestações pró-Palestina envolvam atos de antissemitismo tem levado à proibição de diversos eventos do tipo pela polícia, medida considerada discriminatória por muitos.
Questionada se teme que a academia, cujo financiamento depende totalmente de dinheiro público, perca verbas em razão de pressões políticas, ela responde que não. “Não tenho ideia de onde estaremos em cinco anos”, admite. Mas, continua, o governo atual tem demonstrado apoio e comprometimento com o propósito da instituição. “Prezo muito por isso.”
Para Rapp, o maior desafio da Barenboim-Said hoje tem menos a ver com a situação política alemã e mais com a extensão da guerra, que em janeiro completa três meses. “Quando os nossos alunos israelenses vão ter que voltar para servir no Exército? Quando as famílias palestinas vão dizer a seus filhos que retornem porque Berlim não é seguro para eles? Não temos ideia.”