Para cada vez mais pessoas, a decisão é simplesmente fugir para o mais longe possível —de preferência, os Estados Unidos, mas também, em menor escala, o Brasil.
A crise de segurança galopante no Equador, um dos protagonistas do tráfico de drogas nas Américas, tem feito com que, ao menos desde 2021, um número cada vez maior de moradores decida deixar sua terra natal e emigrar, muitas vezes em rotas altamente perigosas.
O ápice desse movimento foi observado justamente em 2023, mas não seria arriscado projetar que neste 2024, que já se inicia com um novo estado de emergência e uma declaração de guerra civil diante do confronto entre os cartéis de drogas e as forças militares, a emigração vá seguir uma constante ou mesmo crescer —ainda mais.
“A situação está um inferno. Nunca sabemos o que vai acontecer. Não podemos sair de nossas casas, trabalhar ou começar um novo negócio, porque não há segurança”, relata a designer de interiores Cindy Brand, 33. Ela vive na cidade portuária de Guayaquil, considerada uma das mais importantes do país e onde hoje a violência é mais generalizada.
Cindy tenta desde 2016 se mudar para os EUA, mas em oito anos não conseguiu que sua entrevista para finalizar o processo do visto de residência fosse agendada na embaixada americana. Sua mãe, seu padrasto e suas duas irmãs já vivem em território americano. Da família, apenas Cindy segue em Guayaquil. Ela relata medo e desânimo.
Isso porque, nos últimos dois anos, as coisas “apenas pioraram”. Seu relato faz referência a um dos fatores que mais tem sido mencionado por imigrantes e especialistas para entender o por que dessa “onda de emigração” equatoriana: a prática de extorsões vem se tornando cada vez mais frequente, no que é descrito como mais uma “arma do terror”.
Cindy já recebeu uma ligação dessas —assim como, basicamente, todos os seus conhecidos. São membros das gangues e cartéis que ligam para os cidadãos exigindo quantias volumosas de dinheiro e avisam que, se não a receberem, haverá violência. Para muitos dos amigos de Cindy, a ameaça era a de deixar uma bomba na frente de suas casas.
A prática começou como uma ameaça contra grandes empresas. Passou aos comércios de pequeno porte e agora está generalizada, com todos sujeitos a receberem a ligação do que foi apelidado de “vacuna” (vacina), já que os criminosos dizem que pagar a propina que exigem seria uma forma de os cidadãos assegurarem proteção.
Muitas dessas chamadas telefônicas têm origem nas cadeias, nas quais 72% dos detidos respondem a processos por tráfico de substâncias. Os sequestros, uma das ameaças feitas caso a pessoa se negue a pagar a quantia exigida, cresceram 347% em 2023 em relação ao ano anterior, com 67 casos de janeiro a setembro, de acordo com números oficiais.
E o medo dessa ameaça vai sendo incorporado ao cotidiano. Quando aceitou falar com a reportagem, uma das primeiras coisas que Cindy fez foi pedir que, antes de ligar para seu celular, uma mensagem fosse enviada. “É porque aqui te ligam de números privados para tentar te extorquir. Mas me avise, estarei atenta”, avisou.
Apesar do desânimo com a demora do processo e o medo generalizado desde o último fim de semana, quando o anúncio da fuga do chefe do cartel Los Choneros da prisão próxima a Guayaquil despertou a nova e grave onda de violência, Cindy não considera tentar uma rota ilegal para os EUA. “Não sou tão atrevida para isso.”
Mas ela não esconde sua frustração: “Meu desespero está no fato de que conheço muitas, mas muitas pessoas que foram de forma ilegal, ou que entraram com seu visto de turista e nunca mais saíram, e hoje estão bem nos EUA, com suas famílias. Enquanto isso, eu estou aqui.”
Emigrar aos EUA mesmo sem ter permissão de residência no país e, muitas vezes, por rotas perigosas, tornou-se a opção de cada vez mais equatorianos diante desse cenário de insegurança desenfreada.
A insegurança é o que mais faz essa roda girar, mas também há os resquícios da pandemia, que afetou duramente a economia —o que foi um dos fatores que levaram o ex-presidente Guillermo Lasso a antecipar eleições e interromper seu mandato em maio passado.
Em 2021, 95,7 mil cidadãos do país chegaram aos EUA por meio da fronteira com o México, um recorde —nos anos anteriores, a cifra alcançava, no máximo, 20 mil. Prontamente, ainda naquele ano, o governo de Andrés Manuel López Obrador voltou a exigir vistos de equatorianos, o que dificultou a migração. Não à toa, em 2022 o número de equatorianos na fronteira sul caiu 75%, para 24 mil.
Mas esse recuo não se manteve. Em 2023, mais um recorde histórico: quase 114 mil equatorianos chegaram aos EUA pela fronteira com o México. Essa nova alta tem como uma de suas principais respostas o Estreito de Darién, uma perigosa selva entre o Panamá e a Colômbia que cada vez mais migrantes têm cruzado a pé para depois empreender mais um longo caminho por América Central e México até os EUA.
Com a dificuldade para conseguir o visto para migrar por vias legais, muitos decidem empreender essa jornada inteira ao norte por terra.
Eram poucos os equatorianos cruzando essa floresta. Mas a imposição do visto no México mudou essa realidade: em 2023, eles foram a segunda nacionalidade que mais cruzou, atrás dos venezuelanos. Mais de 54 mil equatorianos passaram pela floresta comumente apelidada de “a selva da morte”.
A presença desses migrantes é observada ao longo de todo o caminho até aos EUA, como demonstram dados da centro-americana Honduras, por onde passaram mais de 46 mil equatorianos em situação migratória irregular no ano passado.
A atual onda de emigração em massa é a segunda neste século no Equador, lembra a jornalista Maria Belen Arroyo, editora política da Revista Vistazo, especializada em jornalismo investigativo.
“No final dos anos 1990 tivemos uma grave crise econômica, financeira e bancária que terminou com a mudança da moeda local, o sucre, para o dólar. As cifras são muito incertas, mas se calcula que 300 mil pessoas deixaram o país [à época a população total do Equador girava em torno de 13 milhões de habitantes].”
“Assim, há uma geração nascida nos anos 2000 que viu seus pais e outros parentes emigrando e sabe que há polos de desenvolvimento, como os EUA, onde podem encontrar um espaço de sobrevivência melhor do que no seu próprio país”, segue ela.
E a crise econômica que viu seu ápice na pandemia começou a ser gestada muito antes, explica Arroyo. “Ao redor de 2014 teve fim o boom das commodities, em especial do petróleo, que permitia ao governo de turno [de Rafael Correa] ampliar os projetos de ajuda governamental à população. O até então adotado modelo de colocar dinheiro do Estado em projetos públicos se tornou insustentável.”
A crise sanitária elevou à máxima potência o problema que se agravava ano a ano. Mais recentemente, a insegurança ligada ao tráfico de drogas asfixiou de vez as oportunidades de muitos equatorianos.