Três ex-secretários da Agricultura dos Estados Unidos estão entre os signatários de um documento que alerta para o uso da fome como arma de guerra e sugere que o governo americano lidere uma campanha para que a proibição dessa prática desemboque num tratado internacional.
O ensaio sobre o tema foi publicado pela revista Foreign Affairs, uma das tradicionais publicações americanas de política internacional. Entre os signatários do texto estão Mike Espy e Dan Glickman, que foram da equipe do governo Bill Clinton, e Mike Johanns, do governo George W. Bush.
O coletivo de 11 autores do texto diz que tomar os alimentos como arma de guerra é tão imoral quanto um bombardeio nuclear que igualmente provocaria a morte em massa de civis. Mas, ao contrário da bomba atômica, o uso militar da fome se tornou rotineiro e é quase considerado natural no mundo globalizado.
Os primeiros exemplos citados são os conflitos civis no Iêmen, no Haiti e no Sudão, mas também a guerra Israel-Hamas na Faixa de Gaza. Os autores não apontam qual o beligerante que faz dos alimentos uma arma no território palestino.
Entre as maneiras de levar a fome a determinada população há a interrupção proposital dos fluxos de fornecimento de comida, a destruição das terras cultivadas ou a manipulação dos estoques. O ensaio também cita o bloqueio de territórios, de maneira a impedir a chegada de produtos agrícolas a determinada população. Foi o que aconteceu durante a Guerra Civil da Síria. A ditadura de Bashar al-Assad lançou o mórbido plano “fome até a submissão”, para subjugar populações simpáticas a forças rebeldes.
O ensaio se detém longamente nos efeitos da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022. O Kremlin visou ao país vizinho por meio da neutralização de sua enorme capacidade de produção de grãos. Bombardeou plantações e silos, comprometeu a navegação de cargueiros pelo mar Negro e acabou, além dos estragos no comércio direto, atingindo o mercado mundial de alimentos.
O resultado foi o encarecimento da comida na esfera mundial, tendo dramaticamente triplicado o número de habitantes expostos à insegurança alimentar. A invasão russa da Ucrânia empurrou 333 milhões de pessoas para a beira da fome, dizem os signatários do texto. Ao mirar o mercado de alimentos do vizinho com o qual entrou em guerra, a Rússia provocou uma onda de efeitos secundários em que a fome funcionou indiretamente como instrumento de guerra. Os países mais pobres compraram menos comida. Simples assim.
Por irônico que pareça, a Rússia, que hoje provoca tamanha confusão, foi há 50 anos a vítima de uma tentativa explícita do uso de alimentos como arma de um confronto. O episódio envolveu Earl Butz, secretário da Agricultura dos presidentes americanos Richard Nixon e Gerald Ford. Em entrevista à Time na época, ele afirmou que os alimentos “são uma arma, que funciona hoje como um dos principais itens no arsenal de nossas negociações”.
Vejamos o contexto. Foi nos tempos da Guerra Fria, e os russos, que lideravam a União Soviética, atravessavam uma de suas crises agrícolas. Bateram às portas dos americanos. Estes se recusaram a vender soja e trigo porque os comunistas eram adversários e precisavam ser castigados. Mas o Kremlin se virou de outro jeito e acabou obtendo os grãos de que necessitava de um conjunto de outros fornecedores. Voltou a fazer o mesmo em 1980, quando a “doutrina Butz” foi mais uma vez aplicada por meio de um embargo americano às exportações agrícolas para os russos.
O fato é que Earl Butz acabou se tornando um exemplo negativo que é agora evocado pelo coletivo de autores do texto da Foreign Affairs. Sua imagem é a de um burocrata da administração pública que trombou com fortes valores éticos. Caso se tornassem um dia inimigos num campo de batalha, os russos poderiam ser tranquilamente mortos por militares americanos. Mas os civis russos e a fome que poderiam virtualmente passar não teriam nada a ver com uma guerra de verdade.
O curioso é que o tema já foi codificado por uma das convenções de Genebra, que tratam do direito internacional em caso de guerra. Mas isso se deu de modo incompleto e moralmente ambíguo. Se de um lado a convenção proíbe utilizar a fome como método bélico, de outro a admite, desde que ela não seja intencional para os objetivos militares.
Ou seja, falta à humanidade um bom tratado internacional, que os signatários do texto propõem que passe a ser discutido por iniciativa americana. Esse tratado proibiria o uso dos alimentos como arma de conflito e vetaria travas no comércio de alimentos durante as guerras. E ainda estimularia todos os países a diversificarem seus estoques de comida.