Falta menos de um mês para o Enem, e as palavras arcaicas já começam a sair do armário, como fantasmas que se animam ao toque do calendário. “Quiçá”, “desejoso”, “conquanto” e outras relíquias do vernáculo, que nem nas cartas de amor de nossos avós se veem mais, começam a assombrar as mentes dos jovens que se preparam para o exame.
Mas vamos ser sinceros! Quem, em sã consciência, no calor de uma discussão sobre o VAR no futebol, vira para o amigo e diz, com toda a pompa: “Ora, veja bem, é notório que a exacerbação da violência no certame esportivo requer uma intervenção judicial inequívoca por parte do árbitro”? Pois é, ninguém. Mas o aluno brasileiro, no meio do Enem, ainda acha que precisa escrever assim para não ser jogado para o canto da sala de espera do elevador universitário.
A verdade é que o exame, que já evoluiu em muitos aspectos, continua a ser uma prova assombrada. Os estudantes, coitados, acreditam que, se não enfiar uma mesóclise ou uma locução verbal rebuscada na redação, o corretor vai pegá-los pela orelha e mandá-los direto para o limbo das segundas chamadas.
Esse fenômeno foi justamente o tema de debate na primeira sessão do Ciclo da Cidadania da Língua, realizado no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc em São Paulo, com a organização da Associação Portugal Brasil 200 anos e apoio da Unesp. Comigo, Sérgio Rodrigues, colunista desta Folha, colocou o Enem em um terreno fértil para o retorno dos fantasmas colonialistas.
E como chegamos a este ponto? No calor das redes sociais e em conversas de corredor, perpetua-se a crença de que, para triunfar no exame, é preciso vestir a gramática de gala. Como se os examinadores exigissem uma norma culta que já nem mesmo eles usam. Os jovens, enlevados por essa superstição, adentram a prova com um vocabulário que faria Eça de Queirós dar uma risadinha condescendente. “Conquanto me seja pertinente informar-vos,” começa o jovem que, mal sabe, está a preparar-se para ser corrigido por alguém que provavelmente escreve tão coloquialmente quanto manda o bom senso moderno.
No entanto, os tempos são outros. A tal norma culta —ou melhor, a sua versão mais engessada e anacrônica— já não é mais requisitada nem pelos literatos nem pelos professores, e muito menos pelos leitores dos jornais. Nas páginas da Folha, por exemplo, não há traço de mesóclises ou estruturas sintáticas que só Cabral entenderia.
O debate sobre a língua portuguesa no Brasil, e particularmente sobre como ela se manifesta nas provas de acesso ao ensino superior, revela uma verdade incômoda: ainda estamos presos ao passado, mesmo quando já não há razão para isso. A norma culta arcaica, outrora símbolo de prestígio, hoje trava o progresso de quem só precisa comunicar-se bem, de forma clara e objetiva.
Assim, a mensagem que ecoou pelo Ciclo da Cidadania da Língua foi clara: a língua é território dinâmico, em constante movimento. Quem nela vive, como os jovens que farão o Enem, precisa libertar-se dos espectros antiquados e abraçar o presente. Porque, afinal, o português é bem mais do que um monte de regras; é o que falamos, o que escrevemos e, mais importante, o que vivemos.
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