“Na China, as pessoas votam com os pés”. Enquanto vivi em Pequim, ouvi essa frase dezenas de vezes, ora em tom jocoso, ora com ares de decepção. O significado implícito é que, na falta de uma democracia representativa liberal, os descrentes ou desgostosos com o sistema político seguem a máxima “os incomodados que se retirem”. Mudam-se para outros países.
Este não costumava ser exatamente o caso de Hong Kong, a região administrativa especial cujo controle foi devolvido aos chineses em 1997 sob a promessa da manutenção de um sistema com mais liberdades individuais e coletivas. Protegidos pelo princípio de “um país, dois sistemas”, honcongueses desfrutavam, por exemplo, de liberdade de imprensa, internet livre e voto direto para certos cargos do Legislativo. Direitos que começaram a ruir pós-manifestações de 2019 e a consequente lei de segurança nacional implementada para lidar com os motins.
O resultado de uma política cada vez mais próxima da adotada no território continental pode ser visto em números. Pesquisa divulgada pela Universidade Chinesa de Hong Kong —uma das mais importantes da região especial— mostrou que 38% dos residentes dizem deixariam a cidade se tivessem a oportunidade. É um salto de 9 pontos em relação ao mesmo levantamento no ano anterior, embora ainda menor que os 42% de 2021 e os 44% de 2020 —talvez porque, à época, quem assim respondeu de fato foi embora.
A universidade perguntou também os motivos que faziam os entrevistados quererem emigrar. Para 17,7%, a culpa é do “colapso da liberdade, dos direitos humanos ou da liberdade de expressão”, enquanto 15,1% citaram “política instável”, 14,2%, o “sistema político antidemocrático”, e 11,2%, a “qualidade de vida precária e congestionamento habitacional”.
É o retrato vivo de um tiro que saiu pela culatra. Os manifestantes primeiro foram às ruas em 2014 protestando contra a decisão de Pequim de chancelar ou indicar diretamente os candidatos às cadeiras do Conselho Legislativo local e depois para impedir a aprovação de uma lei de extradição para a China continental, cujo sistema judiciário punitivista e opaco é conhecido pela ingerência governamental.
Receberam bem menos, senão o contrário. Para as eleições realizadas neste ano, por exemplo, a China mudou radicalmente as regras do jogo. O número de cadeiras elegíveis ao voto direto foi de apenas 88 das 470, número incapaz de apitar qualquer coisa mesmo que atuem em grupo. As outras vagas foram preenchidas por nomeados pelo chefe do Executivo, John Lee, após cuidadosa seleção em Pequim ou por meio de um colégio eleitoral diretamente escolhido pelo regime.
Mesmo quem tentou a sorte nas urnas precisou passar por crivo à prova de separatistas e ativistas pró-democracia. Todos foram submetidos a cuidadoso escrutínio antes de terem suas candidaturas validadas. Uma vez selecionados, juravam lealdade à China, reconhecendo a soberania do Partido Comunista em Pequim.
Não foi surpresa que a participação tenha sido tão baixa —27,5%, a menor da história e bem distante dos 71% vistos no auge dos protestos em 2019, quando o bloco democrático conquistou maioria esmagadora dos votos. Hoje, os remanescentes daquela época ou estão presos e condenados a vários anos de cadeia por incitarem separatismo ou fugiram da ex-colônia britânica.
Na semana passada, por exemplo, um dos ícones remanescentes da efervescência política em Hong Kong, a jovem parlamentar Agnes Chow, decidiu violar os termos da liberdade e fugiu para o Canadá. Votou com o pé, à exemplo do ditado popular. A cidade prometeu que ela viveria como fugitiva pelo resto da vida e jamais poderia voltar para casa. Talvez tenham falhado em entender que, para muitos cidadãos locais, o conceito de casa talvez deixou de existir há alguns anos.
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