Donald Trump e sua equipe passaram quase dois anos criando uma campanha para derrotar um presidente branco cuja idade, 81 anos, levava a maioria dos americanos a duvidar de sua capacidade de enfrentar um novo mandato de acordo com as pesquisas eleitorais.
De repente, porém, o republicano passou a ter como adversário uma figura totalmente diferente —a vice-presidente Kamala Harris, uma mulher negra quase 20 anos mais jovem que ele e que, independentemente de suas qualidades e defeitos, traz incerteza a uma disputa em até pouco tempo atrás parecia bastante previsível.
Pessoas próximas de Kamala já sinalizaram que sua campanha se baseará na ideia de “justiceira contra fora-da-lei”, destacando sua experiência como promotora e enfatizando que Trump foi condenado por 34 crimes e é alvo de ainda mais processos.
A estratégia tem potencial para atrair eleitores indecisos que estavam descontentes tanto com Trump quanto com o presidente, Joe Biden. Também pode levar o republicano, que costuma reagir a críticas de forma desproporcional, a ressuscitar a retórica problemática que usou contra outras procuradoras negras —como Letitia James, de Nova York, e Fani Willis, da Geórgia, ambas as quais ele atacou pessoalmente e chamou de racistas.
Kamala deu uma amostra de seu plano de ataque em um evento nesta segunda-feira (22). Na ocasião, ao lembrar seus tempos como promotora em São Francisco e procuradora-geral da Califórnia, disse que enfrentou criminosos de todo tipo: “abusadores de mulheres, estelionatários que enganavam seus clientes, trapaceiros que desobedeciam a lei em benefício próprio”. “Prestem atenção quando eu digo: eu conheço o tipo de Donald Trump”, completou ela.
O republicano, por sua vez, tem tentado suavizar alguns de seus discursos mais duros sobre querer se vingar de seus rivais. Mas, ao longo dos anos, ele afastou uma proporção considerável de eleitores que têm formação universitária ou são donas de casa com suas declarações sobre gênero e raça. Um eventual ataque a Kamala por parte do empresário poderia alienar ainda mais essas pessoas.
Trump tem um longo histórico de ataques pessoais contra mulheres que foram suas adversárias políticas ou o criticaram por algum motivo, descrevendo-as como histéricas ou pior.
O republicano fez declarações contra Kamala nesse estilo em público e a portas fechadas. A pessoas próximas, ele já disse que ela “se comunica em versos” —uma referência às suas ocasionais frases desconexas que viraram memes nas redes sociais, foram parodiadas em programas de humor e são repetidas à exaustão pela Fox News, emissora conservadora.
Abertamente, Trump descreveu a democrata como desagradável, louca e desrespeitosa, zombou de sua risada e pronunciou seu nome incorretamente. Também afirmou que Harris não poderia ser vice-presidente segundo a legislação porque os pais são imigrantes, o que é falso.
Estrategistas republicanos afirmam que vários fatores do cenário eleitoral atual ainda beneficiam Trump, como o entusiasmo que a base do partido tem demonstrado por ele e a antipatia por Biden.
Além disso, pesquisas têm mostrado que o período dele à frente dos Estados Unidos tem sido visto de forma mais mais favorável em retrospectiva do que na época. E os assessores de Trump questionam como Kamala se sairá como protagonista de uma campanha depois de ela ter sido derrotada relativamente rápido nas primárias de seu partido em 2020.
Os caminhos do republicano e da democrata se cruzaram muito antes de eles estarem em chapas rivais naquele ano. Trump doou um total de US$ 4.000 para a campanha de Kamala à reeleição para a Procuradoria-Geral da Califórnia entre 2011 e 2013 (ela venceu o pleito pelo cargo pela primeira vez em 2010 e pela segunda, em 2014). Na época, o empresário enfrentava a possibilidade de abertura de uma ação coletiva no estado acusando de fraude a sua Universidade Trump.
Desde então, o republicano a atacou ferozmente, especialmente quando ela se tornou companheira de chapa de Biden, em 2020.
Trump insiste que não está preocupado com a provável indicação de Kamala para concorrer às eleições e que está ansioso pela corrida que se aproxima.
Mas as ações de sua campanha nas últimas semanas contradizem essa postura. No domingo, o empresário, que afirmou diversas vezes que enfrentaria Biden em um debate em qualquer lugar, a qualquer hora, deu a entender que gostaria de mudar os termos do segundo evento, já marcado. Na sua rede social, Truth Social, ele afirmou que o debate deveria ser transferido da emissora ABC para a Fox News.
Desde que Biden anunciou que desistiria de sua candidatura, no domingo (21), Trump e seus assessores têm reclamado do dinheiro que desperdiçaram em uma campanha contra um candidato que não é mais seu adversário.
Jessica Mackler, presidente do grupo Emily’s List, que apoia campanhas de mulheres do Partido Democrata que defendem o direito ao aborto, disse que a reviravolta na disputa “obriga Donald Trump a se comportar de uma maneira muito diferente, o que ele não está conseguindo fazer”.