A menos de um mês das eleições da Venezuela, o rosto da campanha de oposição, María Corina Machado, afirma à Folha que Nicolás Maduro tem operado a máquina do regime para que cada vez menos pessoas votem porque tem medo do resultado real.
Ela se refere a mudanças no regramento que dificultaram ou mesmo impossibilitaram o registro eleitoral da maior parte da diáspora dos venezuelanos, que hoje supera 6 milhões de pessoas em todo o mundo, número similar às diásporas de países em guerra.
María Corina não será o rosto da oposição nas cédulas eleitorais por ter sido inabilitada por Caracas. Mas é, inquestionavelmente, a líder opositora. É ela quem reúne milhares em todos os estados enquanto Edmundo González, seu aliado e o nome registrado para concorrer à Presidência, representa a campanha institucionalmente.
A ex-deputada parece não trabalhar com o cenário em que o regime saia vitorioso. Em vez disso, prega a importância do que chama de uma transição ordenada: que Maduro aceite a vitória opositora.
Pouco após o regime anunciar a retomada de diálogos com os Estados Unidos nas semanas que antecedem o pleito, ela diz que democratas e republicanos compreendem a importância da mudança na Venezuela.
E menciona dois fatores que vê como consequência de um eventual governo da oposição: o fim da emigração em massa e o reingresso da potência petroleira venezuelana no mercado energético global.
“Não vamos seguir um processo de vingança, nem de retaliação, mas um processo de institucionalização democrática que possa colocar a Venezuela não apenas para lidar com a dramática crise humanitária mas para produzir de forma que possamos ser em um curto prazo um aliado energético estratégico e confiável.”
“Muitos dos que estão aqui sofrendo não querem sair e veem no dia 28 de julho sua última chance de voltar à Venezuela ou de não sair”, diz ela. “Você não imagina quantos avós vêm até mim chorando e dizem: ‘Eu só conheci meus netos pelo WhatsApp. Não quero morrer sem abraçá-los’, ou uma mãe: ‘Todos os meus filhos foram embora e este é o último que me resta, toda a minha esperança está no dia 28’.”
A enxuta lista final de observadores internacionais das eleições, além da ONU, conta com uma maioria de países simpáticos a Maduro, como Bolívia, Honduras e Rússia…
A resistência do regime de Maduro a permitir que o mundo veja o que está acontecendo na Venezuela se torna cada vez mais evidente. Há um movimento sem precedentes pela liberdade, principalmente pela unificação da família. Isso se tornou o elemento que une e fortalece todos os venezuelanos: trazer nossos filhos de volta para casa. O regime quer impedir que o mundo veja a expressão da soberania popular em 28 de julho.
E quer impedir que se constatem violações que estão ocorrendo, como a detenção de 31 venezuelanos por razões ligadas à campanha. Desde a chefe do comando até um cidadão cujo único crime foi participar de um evento. Há seis pessoas asiladas na embaixada argentina. Além de bloqueios de estradas, cortes de energia, retirada de licença de um ônibus e do motorista por levar pessoas a um evento, fechamento de um local que vende empanadas porque nos serviram café da manhã. O regime não quer que o mundo veja, por isso bloqueia observadores.
Sobre as denúncias de desaparecimentos forçados, parece que há muitos mais atualmente. O que está acontecendo em geral? O que ocorre com essas pessoas?
Em alguns casos, passamos até dois meses sem ter informações sobre o paradeiro de alguns de nossos colegas. Em todos os casos, foi negado o direito à defesa privada, sendo obrigados a ter um defensor público que os pressiona a testemunhar contra mim, oferecendo benefícios. A ameaça é constante, com muitos membros de nossas equipes tendo suas casas vigiadas; seus familiares, esposas ou filhos seguidos. Em algumas áreas, apareceram recentemente pichações nas paredes ou portas de suas casas marcando-os para a morte.
Há um movimento social sem precedentes no país pela liberdade, principalmente pela unificação da família
A maioria da diáspora venezuelana não pôde se registrar para votar. São milhões de pessoas. Por que acha que o regime fez isso? A ausência desses votos pode impactar nos resultados da oposição?
O impacto é que vamos ganhar com menos votos, mas não vai além disso. Potencialmente deveríamos ter um registro eleitoral de cerca de 26 ou 27 milhões de venezuelanos, incluindo os que estão dentro e fora. Mas quase 10 milhões não poderão votar.
Cerca de 4,5 milhões estão inscritos, mas se foram do país. Há mais meio milhão que completou 18 anos no exterior. E os jovens que estão aqui e que o regime também não permitiu que se inscrevessem porque não abriram o registro e colocaram obstáculos ao longo desses anos.
A razão é clara. O regime sabe que a maioria dos que fugiram da tragédia venezuelana quer voltar.
Muitos dos que estão aqui sofrendo não querem sair e veem no dia 28 de julho sua última chance de voltar à Venezuela ou de não sair. Você não imagina quantos avós vêm até mim chorando e dizem: “Eu só conheci meus netos pelo WhatsApp. Não quero morrer sem abraçá-los”, ou uma mãe que me diz: “Todos os meus filhos foram embora e este é o último que me resta, toda a minha esperança está no dia 28”.
O regime sabe disso e por isso seu foco tem sido diminuir a participação de qualquer maneira, impedindo as pessoas de se inscreverem, movendo-as de um centro eleitoral para outro sem consentimento. Isso aconteceu com pessoas da minha família.
Por meio do medo, da intimidação, o regime aposta em reduzir a participação, e nós estamos lutando para que seja a mais alta possível.
Maduro também mudou as regras para que somente possam ser fiscais das mesas de votação as pessoas inscritas naquela mesma mesa, o que antes não ocorria. Isso dificulta a fiscalização?
O regime não entende nada do que está acontecendo. Estão errando, acredite. Essa decisão é uma arbitrariedade, mas vai afetá-los mais do que a nós. Já fizemos a primeira inscrição de nossos fiscais na plataforma do Conselho Nacional Eleitoral. Teremos ao menos um fiscal em mais de 98% das mesas de votação.
A diferença é muito evidente. O regime tem que ameaçar para que sua gente se inscreva; oferecer dinheiro para que compareçam a atos, enquanto, conosco, as pessoas não só agem voluntariamente, mas vêm e me dizem: “Como posso ajudar?”. Oferecem suas casas, seus carros.
Isso é inédito na Venezuela e, me atrevo a dizer, na América Latina. É uma campanha sem dinheiro. Não estamos contratando produtores para fazer vídeos e materiais publicitários, é tudo orgânico. As músicas, os lemas, os cartazes, não estamos imprimindo panfletos. As pessoas pegam seu papel e escrevem o que lhes sai da alma e levam.
Por meio do medo, da intimidação, o regime aposta em reduzir a participação, e nós estamos lutando para que seja a mais alta possível
Uma vez que saiam os resultados das eleições, se vocês acreditarem que houve fraude, qual é o plano? Um levante? Há algum pacto negociado sobre o que pode acontecer depois das eleições?
Me pergunto em que momento as eleições deixaram de ser a expressão da vontade individual de cada venezuelano, da soberania popular, e se tornaram um pacto entre atores e elites. Me pergunto se essa pergunta se daria no Brasil, na Colômbia, nos Estados Unidos, no Canadá. Uma eleição é a expressão da soberania popular, é a soma dos votos.
Mas vocês acham que há chance de os resultados finais, com a máquina do regime, serem transparentes? Hoje a pesquisa mais dura contra Edmundo González lhe dá uma vantagem de mais de 20 pontos, e isso cresce todos os dias. Essas eleições são livres? Não são. É um processo absolutamente viciado, e o regime todos os dias anuncia mais e mais obstáculos. Mas no final a força é tão grande, a diferença a maioria é tão avassaladora, que o país vai se defender.
Maduro anunciou que retomará o diálogo com os EUA. O país tem eleições em novembro. Como o cenário eleitoral, possibilidade de Joe Biden continuar ou então de Donald Trump voltar, pode afetar a Venezuela nesse ano tão importante?
Acredito que houve um entendimento nos EUA, não apenas do setor político, mas de toda a sociedade, sobre a absoluta prioridade que a Venezuela representa em termos de segurança no hemisfério. Por isso nossa proposta se manteve sempre como bipartidária.
A sociedade norte-americana, assim como a América Latina, entende que uma transição ordenada na Venezuela permitiria não apenas deter a migração mas reverter a migração e permitiria iniciar um processo de construção democrática onde nós daremos garantias aos setores.
Não vamos seguir um processo de vingança, nem de retaliação, mas um processo de institucionalização democrática que possa colocar a Venezuela não apenas para lidar com nossa dramática crise humanitária mas para produzir de forma que possamos ser em um curto prazo um aliado energético estratégico e confiável.
Se isso não ocorrer, se Maduro pela força, com violência, pretender ficar, imagine o que isso significaria em termos de desespero. Estaríamos vendo a maior onda migratória que já houve até agora. Porque as pessoas sentiriam que lhes é tirada a possibilidade de um futuro.
Inclusive setores financeiros ou econômicos que estiveram nestes últimos tempos buscaram certa estabilização ou normalização do regime de Maduro percebem que a única maneira que a Venezuela possa realmente explorar todo o seu potencial energético e outros é com uma mudança de regime que permita que exista Estado de Direito, respeito à propriedade, e abertura nos mercados.
Então eu acredito que nos EUA hoje de ambos os partidos há consciência sobre a importância da transição democrática na Venezuela.
O que esperam do Brasil e do presidente Lula e como avaliam a atuação do Brasil nesse tema até agora?
Acredito que os governos da América Latina entendem perfeitamente a importância que a resolução do conflito venezuelano teria. A melhor opção para todos é uma transição negociada. Acreditamos que os Acordos de Barbados devem ser respeitado, como disse o presidente Lula, como disse o chanceler [Mauro Vieira].
Acredito que o presidente Lula sabe que tem uma responsabilidade como um dos principais líderes do hemisfério e também porque um cenário de violência na Venezuela teria consequências terríveis.
Raio-X | María Corino Machado, 56
Líder da oposição na Venezuela, venceu as primárias opositoras, que tiveram os resultados suspensos pelo Supremo local, aliado ao chavismo. Também foi posteriormente inabilitada por 15 anos por supostas irregularidades administrativas do período em que foi deputada e por ter apoiado sanções dos EUA à Venezuela. É engenheira.