Anunciantes-fantasma e de aluguel, deep fakes, premiação de youtubers governistas e armação de debates com falsos eleitores comuns. A campanha suja na Índia serve de alerta para estratégias que podem ser replicadas em outros países.
Muitas das táticas anteriormente criadas pelos indianos —como os grupos de WhatsApp para disseminar desinformação eleitoral, aplicativos de candidatos que coletam dados dos eleitores e segmentação de mensagens— depois foram usadas em eleições em países como o Brasil e os Estados Unidos.
No pleito deste ano, que se encerrou neste mês e deu maioria parlamentar à aliança liderada pelo partido de Modi (BJP), foram introduzidas novas ferramentas de campanha.
Os anunciantes fantasma e de aluguel são um exemplo. A prática já era empregada desde a eleição de 2019, mas se intensificou. No caso dos fantasmas, os dados que eles fornecem à plataforma de internet para comprar os anúncios políticos são incorretos ou fictícios. Então, é impossível identificar quem realmente está pagando pela propaganda política.
Já os anunciantes “de aluguel” são grupos ou páginas que, oficialmente, não têm ligação com os partidos, mas gastam milhões em anúncios em benefício de candidatos. Esses anunciantes são frequentemente acionados para atuar no lado B das campanhas, espalhando desinformação sobre oponentes. Como não há vínculo formal com as agremiações políticas, estas não podem ser responsabilizadas, e os gastos com a propaganda não entram nas declarações de despesas exigidas pela comissão eleitoral indiana.
Dos cem maiores anunciantes políticos da Índia nas plataformas da Meta (Instagram e Facebook), 22 eram fantasmas ou “de aluguel”, indica estudo das organizações Eko e India Civil Watch International (ICWI). Segundo o levantamento, eles gastaram US$ 1 milhão no período de 90 dias encerrado em 25 de março, totalizando 22% de todas as despesas em anúncios classificados como ” temas, eleições ou política” na biblioteca da Meta.
Grande parte dessa propaganda contém desinformação e discurso de ódio contra a minoria muçulmana do país, campanha negativa e difamação de determinados candidatos e promoção de fundamentalismo hindu.
“Anúncios políticos em redes sociais na Índia precisam seguir as mesmas regras que aqueles veiculados em TVs, rádios e meios impressos. A Meta está permitindo que pessoas de má-fé explorem brechas usando organizações fantasma para disseminar conteúdo desagregador e violar leis eleitorais”, diz Maen Hammad, pesquisadora da Eko.
Um estudo do Tech Transparency Project revelou que existe um mercado paralelo de contas no Facebook que são alugadas para veicular anúncios políticos na Índia, apesar de a Meta proibir a prática.
Procurada, a empresa afirmou, em nota, proibir “que proprietários de contas de anúncios vendam o acesso a suas contas”. “Trabalhamos para remover quaisquer anúncios e agir contra proprietários de contas de anúncios que violem nossas políticas. Para veicular anúncios sobre política ou eleições, as pessoas precisam passar por um processo de autorização em nossas plataformas e são responsáveis por cumprir com todas as leis aplicáveis.” Após as denúncias, a Meta afirmou ter agido contra 14 contas e administradores.
Falsos debates de eleitores na rua
Uma das inovações desse ciclo eleitoral na Índia foi a armação de entrevistas e debates supostamente espontâneos com eleitores, para serem veiculados em canais do YouTube.
A Índia é de longe o maior mercado do YouTube no mundo —são 462 milhões de usuários, de acordo com o portal de estatísticas Statista, ante 238 milhões dos EUA, em segundo no ranking. E vídeos no estilo “fala povo”, em que youtubers conversam com transeuntes sobre questões políticas, são ultrapopulares, com dezenas de milhões de visualizações. O que inicialmente começa como uma entrevista costuma descambar para bate-bocas acalorados.
Reportagem de Akhil Ranjan no site indiano NewsLaundry revelou que muitos funcionários do BJP ou de organizações extremistas hindus participam regularmente desses debates inflamados, criticando os partidos da oposição, elogiando Modi e demonizando muçulmanos. Eles fingem ser cidadãos comuns e se identificam apenas como “jovem patriótico”, “estudante”, “apoiador de Modi”, ” eleitor de Déli”.
“Nem todo muçulmano é terrorista, mas por que todos os terroristas são muçulmanos?”, dizia em vídeo um desses jovens anônimos —que, na realidade, era um porta-voz do BJP.
Outra fervorosa defensora de Modi nos vídeos, identificada apenas como “jovem muçulmana”, é, na realidade, outra representante do BJP.
Há também canais do YouTube ligados a nomes da oposição, como o deputado Rahul Gandhi, do partido do Congresso Nacional, e o governador de Déli, Arvind Kejriwal, do partido Aam Aadmi. Mas muitos desses canais foram suspensos ou desmonetizados pelo YouTube, após solicitações do Ministério da Tecnologia indiano.
Prêmio para youtubers governistas
Os influenciadores do YouTube, aliás, tornaram-se um dos principais braços da propaganda partidária. Segundo estudo de Joyojeet Pal, professor da Universidade de Michigan, muitos políticos deixaram de conceder entrevistas a veículos de notícias e só falam com youtubers amigáveis, que têm uma abordagem pouco crítica. Normalmente, eles não têm a política como tema principal.
O primeiro-ministro Modi, reconhecendo o poder de comunicação desse grupo, criou um concurso especial, o National Creators Awards. Ele entrega os prêmios pessoalmente e divulga os 14 canais agraciados em suas redes sociais. Para especialistas, cooptar estrelas do YouTube é uma maneira eficiente de atingir os eleitores mais jovens.
“Há muitos influenciadores colaborando com o governo atual e fazendo vídeos”, disse à AFP uma das premiadas, Maithili Thakur, que tem 14 milhões de seguidores no Facebook e mais de 5 milhões no YouTube e Instagram.
Vídeos e áudios deepfake
Na eleição deste ano, não houve o apocalipse de vídeos e áudios deepfake que se temia. Mas alguns partidos e candidatos recorreram à prática para difamar ou prejudicar oponentes.
Viralizaram vídeos criados por inteligência artificial em que Aamir Khan e Ranveer Singh, estrelas de Bollywood, supostamente criticavam Modi e apoiavam candidatos da oposição. Os artistas registraram queixas na polícia, mas os autores dos vídeos falsos não foram identificados.
Em maio, a comissão eleitoral instruiu os partidos a removerem os deepfakes em até 3 horas após notificação das autoridades, mas a determinação não tem poder de lei.
Segundo Prateek Waghre, diretor-executivo da Internet Freedom Foundation, não existe uma legislação específica para IA na Índia. “A lei de tecnologia de informação e o código penal vedam roubo de identidade e imitação, mas não há nenhuma exigência de rótulos alertando sobre uso de IA”, diz. No Brasil, uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral de fevereiro deste ano exige aviso de uso de IA em comunicação política e proíbe deepfakes.