Por que o ministro da Economia e candidato a presidente de um governo fracassado venceu o primeiro turno da eleição argentina?
Por causa de medidas eleitoreiras, que puseram e ainda vão colocar mais dinheiro no bolso dos argentinos, chamadas sarcasticamente pela oposição de “plano dinheirinho” (“plan platita”). Devido a divisões e conflitos na centro-direita do “Juntos pela Mudança” de Patricia Bullrich. Porque houve medo do autodenominado anarcocapitalista Javier Milei, em particular entre aqueles que dependem de benefícios e subsídios sociais, de servidores públicos e do sindicalismo, ainda forte entre os vizinhos.
Nesta segunda-feira, o comentarismo político e econômico da Argentina procurava entender o sucesso de Sergio Massa no primeiro turno.
No entendimento dos donos do dinheiro e de muito argentino que tenta se livrar de seus pesos e se proteger do risco crescente de hiperinflação, a expectativa de desastre continua. O dólar paralelo foi a 1.100 pesos, embora as cotações estejam ainda mais disparatadas por causa das batidas do governo em casas de câmbio. Na semana passada, antes de a repressão voltar a apertar, o paralelo, dito “blue”, estava por volta de 900 pesos.
Os títulos em dólar da dívida do governo caíam em torno de 11% no fim da tarde. Isto é, havia mais gente vendendo títulos do que comprando —mais gente querendo se livrar dos papéis. O risco-país, pois, subia ainda mais, a 2.582 pontos (o do Brasil anda pela casa de 200 pontos). O custo de financiar o governo, portanto, cresce.
Sergio Massa ficou perto de ganhar no primeiro turno. Com mais 3,3% dos votos, levava, tudo mais constante. Teve 36,7% no domingo; nas eleições primárias de agosto, tivera 28,9%. Agora, a fim de vencer, precisa conquistar 40% dos votos dos candidatos que não foram para o segundo turno. Javier Milei precisa de 60% desses votos.
Massa é o ministro da Economia de um país com inflação anual de 138% e expectativa de 181% no fim deste 2023, segundo a mediana das projeções recolhidas pelo Banco Central argentino (BCRA) de setembro, as mais recentes. O PIB, a renda ou produção da economia, deve encolher entre 2,5% e 3% neste ano.
Na prática, Massa é o presidente do país desde abril, quando Alberto Fernández desistiu da reeleição. Não teve só o desgaste do cargo, porém. Sua capacidade de mexer os pauzinhos dos gastos públicos, com subsídios diretos e indiretos, teria rendido votos.
Por exemplo, o governo criou um sistema de devolução do imposto sobre consumo (IVA) de alimentos. Deu dois meses de bônus para trabalhadores informais e desempregados, além de extras para aposentados, pensionistas e beneficiários de assistência social. Reajustou a tabela do imposto de renda, que entra em vigor agora em outubro —quase ninguém vai ter descontos no salário. Criou linhas de crédito subsidiado. Adiou reajustes de energia (elétrica, gás) e transporte, atrasados entre 60% e 90%, a depender de quem faz a conta. Reprimiu o preço do dólar paralelo com batidas da polícia e da Receita federal nas casas de câmbio.
Na imprensa, em particular na econômica, analistas aparentemente desafetos de Massa e do peronismo, além de informações de bastidores, jogavam parte da culpa do fracasso da centro-direita em Mauricio Macri, ex-presidente de um governo também fracassado (2015-2019). Macri teria simpatias por Milei; teria incentivado ou ignorado os conflitos de partidos e grupos da aliança Juntos pela Mudança.
Macri teria afastado o pessoal da União Cívica Radical (UCR), outrora um dos dois grandes partidos argentinos, destruído pele governo catastrófico de Fernando de la Rúa (1999-2001). O pessoal da UCR não quer Milei.
Patricia Bullrich, a candidata de Macri, chegou em terceiro, com 23,83% dos votos (tivera 29,64% nas primárias, em agosto). No discurso da derrota, no domingo, disse praticamente que não se juntaria a Massa. A coalizão deve ir dividida para o segundo turno.
Na Câmara dos Deputados, que renovou metade dos representantes, o resultado da centro-direita também foi ruim. O União pela Pátria, de Massa, ficou com 108 cadeiras (perdeu 10); o Juntos pela Mudança, de Bullrich, com 93 (perdeu 25). Os libertários de Milei passaram de 3 para 37 representantes. Ninguém terá maioria na próxima legislatura.
Uma terceira linha de explicações atribuía a reação de Massa ao medo do extremismo de Milei, sua promessa de desmontar o Estado (até o BC), de privatizar serviços de educação e saúde, de dolarizar. Alguns analistas dizem que a similaridade ou comparações de Milei com Jair Bolsonaro teria causado outros receios.
Além de Milei em si, o programa do autodenominado candidato libertário ou anarcocapitalista teria assustado servidores e pessoas que dependem do Estado. Na Argentina, funcionários públicos são cerca de 17,5% dos ocupados (são perto de 12% no Brasil). Cerca de 18,7 milhões de pessoas de uma população de 42,3 milhões recebem dinheiro do Estado, escreve José del Rio, no La Nación. O peronismo, em sindicatos e governos de províncias, teria articulado uma reação depois do resultado das primárias. Naquele momento, parecia que Massa poderia mesmo ficar fora do segundo turno.
Deve sobrevir um choque na economia argentina. A dúvida maior é se será organizado, por meio de um plano de conserto, ou desorganizado, com hiperinflação descontrolada. O próximo presidente assume no dia 10 de dezembro.
Massa tem dado sinais de que a tentativa de estabilização seria gradual, com “união nacional” (cada vez mais difícil) e sem prejudicar os mais pobres (praticamente impossível). Além do mais, dirá que Milei é uma ameaça à democracia. Até agora, Milei prometia choque, embora em reuniões com a elite econômica seus assessores afirmassem que a mudança, embora grande, ocorreria de modo comedido e com acordo do Congresso.
O terço dos votos que não foram nem para Massa nem para Milei vai se orientar pelo medo e pela raiva da paciência esgotada.