Três quadras separam as duas lojas de grãos que Lizeth Carranza, 43, mantém no movimentado centro de San Salvador, a capital salvadorenha.
Um dos estabelecimentos fica acima da rua 15, o outro, abaixo. A distância era suficiente para a comerciante precisar pagar extorsão duplicada para as gangues que há apenas dois anos dominavam praticamente todo o país —a Barrio 18 e a MS-13. Isso porque cada uma das lojas ficava em um território controlado por uma facção diferente.
Carranza conta que pelo menos US$ 125 (R$ 625 no câmbio atual) mensais eram destinados a esses pagamentos. Em uma conversa de dez minutos com a reportagem, ela elenca todo tipo de violência que já presenciou na região: funcionários de lojas vizinhas assassinados, ameaças a familiares, execuções à luz do dia.
“Hoje, sinto tranquilidade. Se vem um carro ou uma moto, não sinto medo”, diz ela.
Por anos, a criminalidade foi a maior fonte de preocupação dos salvadorenhos. Os índices de segurança explicavam o temor —o país figurava entre os mais perigosos do mundo. Em 2015, por exemplo, um dos anos mais violentos da história recente da nação, mais de 106 pessoas foram assassinadas para cada 100 mil habitantes. A título de comparação, no mesmo ano, a taxa de homicídios dolosos no Brasil foi de 25,7 por 100 mil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Isso mudou em 2020. Naquele ano, a economia passou a ser o maior problema do país para 35,3% da população, e a delinquência foi rebaixada a segundo lugar, sendo citada como principal preocupação por 18,8% dos entrevistados em uma pesquisa da Universidade Centro-Americana.
Desde então, o cenário se manteve —atualmente, nove em cada dez habitantes dizem se sentir seguros na nação.
Para conseguir a façanha, o presidente licenciado do país, Nayib Bukele, que tenta uma reeleição neste domingo (4) a despeito da Constituição vetar essa possibilidade, eliminou praticamente todos os contrapesos da jovem democracia local e lançou uma enorme operação de encarceramento em massa.
No pacote do “milagre salvadorenho”, como as políticas do líder vêm sendo chamadas, vigora um estado de exceção renovado todos os meses há quase dois anos. O instrumento, aplicado pela Assembleia governista após uma onda de violência que fez 87 vítimas ao longo de um fim de semana de março de 2022, suspende o direito de associação e reunião, cessa a inviolabilidade das comunicações e priva os cidadãos do direito de serem imediatamente informados sobre o motivo de eventuais detenções que sofram.
Hoje, o país tem mais de 100 mil presos —em grande parte inocentes, segundo diversas organizações de direitos humanos— em um universo de 6 milhões de habitantes.
“Antes disso, o sistema definitivamente não funcionava de maneira perfeita”, afirma Rina Montti, diretora de pesquisa da área de direitos humanos da ONG Cristosal. “Mas, de alguma forma, era possível se defender. Neste momento, é impossível defender qualquer pessoa que esteja presa.”
O sistema imperfeito ao qual Montti se refere permitia que os familiares soubessem onde o encarcerado estava, averiguassem por qual delito ele era acusado e nomeassem um advogado para defendê-lo, por exemplo.
Embora visitas familiares estivessem suspensas desde 2016, quando o país estava sob a gestão do esquerdista Salvador Sánchez Cerén (2014-2019), o acesso de entidades de direitos humanos aos centros penais era mais frequente, segundo a pesquisadora.
Atualmente, advogados também foram proibidos de visitar seus clientes nas celas, e o prazo para as audiências de custódia, em que os magistrados decidem sobre a legalidade de determinada captura, foi estendido para duas semanas. Quando finalmente conseguem se encontrar com um juiz, os encarcerados muitas vezes nem sequer o veem, de acordo com Montti.
“São juízes sem rosto. A pessoa privada de liberdade não tem a possibilidade de saber quem está do outro lado, porque normalmente são julgamentos virtuais”, diz ela.
Em julho do ano passado, em uma tentativa de desafogar a Justiça, a Assembleia aprovou a possibilidade de julgar grupos de até 900 pessoas ao mesmo tempo.
Antes mesmo da medida, porém, em maio, um grupo de relatores da ONU afirmou que as audiências de custódia estavam por vezes avaliando casos de até 500 pessoas simultaneamente. “Os defensores públicos têm tido de três a quatro minutos para apresentar os casos de 400 a 500 detidos de uma só vez”, afirmou o organismo na ocasião.
Apesar de toda a restrição aos direitos civis, a gestão Bukele virou um modelo para parte da direita no continente, incluindo o Brasil. O MBL (Movimento Brasil Livre), por exemplo, enviou dois de seus integrantes —Renato Battista, de São Paulo, e Gabriel Costenaro, do Rio de Janeiro— para acompanhar a eleição deste fim de semana.
Antes disso, em dezembro, uma comitiva de cinco parlamentares liderada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) foi para El Salvador em uma viagem que custou R$ 96.068,01 aos cofres públicos.
No requerimento à Comissão de Segurança Pública, o deputado citava áudios revelados pelo jornal El Faro em que um membro do governo parece negociar com a MS-13, uma das principais gangues do país. “Qualquer semelhança com o que vivemos no país não é mera coincidência”, afirmava o texto.
O suposto pacto mencionado é, no entanto, do próprio governo Bukele, segundo o jornal que o revelou. O veículo mudou sua sede para a Costa Rica para fugir da perseguição estatal.
Para José Miguel Cruz, pesquisador do Centro Latino-Americano e Caribenho da Universidade Internacional da Flórida, a fórmula de segurança foi exitosa —nos termos do governo— por causa de características muito específicas de El Salvador. “É uma grande fantasia pensar que esse modelo pode ser bem-sucedido em outros países”, afirma.
Diferentemente do que ocorre em outras nações da América Central, as gangues de El Salvador têm pouca atuação dentro das redes internacionais do narcotráfico —ali, a economia do crime funcionava especialmente por meio da extorsão dos moradores, dos mais pobres até os empresários de médio porte.
“Isso tem a ver com o fato de que uma parte relevante da economia depende de remessas [dos expatriados], o que representa alguma liquidez até para famílias relativamente pobres”, diz Cruz. Atualmente, cerca de 1,3 milhão de salvadorenhos vivem nos Estados Unidos, e enviam, em grande parte, dinheiro para suas famílias. Em 2022, esse volume representou 23,7% do PIB do país, segundo o Banco Mundial.
Soma-se a isso o fato de que, geograficamente, o país não é estratégico para o tráfico internacional. Na América Central, a maior parte do transporte de drogas se dá pelo mar do Caribe, que não banha El Salvador.
Além disso, ainda que a droga que sai dos países andinos passe por terra ao rumar para os EUA, por exemplo, é mais conveniente para os traficantes passar pela Guatemala ou por Honduras.
Este último país, aliás, decretou um estado de exceção parcial na esteira da experiência salvadorenha, sem muito sucesso. De acordo com Cruz, isso se deve ao elevado número de grupos criminosos na nação, o que dificulta a operação. “Assim que você controla um, outro se fortalece”, afirma o pesquisador. Nesse sentido, a presença de apenas duas facções em praticamente todo o território salvadorenho —Barrio 18 e MS-13— foi um facilitador para Bukele.
Cruz diz, porém, que o modelo em curso não é a solução definitiva para o problema da criminalidade salvadorenha. “Primeiro porque, em algum momento, os detentos sairão da prisão. E segundo porque não há nada que garanta que os centros de detenção deixaram de ser escolas do crime”, diz ele.
“No Brasil, o encarceramento em massa fortaleceu o PCC, o Comando Vermelho e outros grupos. É isso que deve acontecer, em algum momento, em El Salvador —haverá uma espécie de rearranjo das gangues.”
Nada disso, porém, deve emergir nos próximos meses, na avaliação do cientista político. “El Salvador é uma panela de pressão que o governo faz de tudo para manter tampada enquanto tenta ser reeleito.”